"...aqueles que faleceram na alegria e na esperança ninguém os chora, e o seu cortejo fúnebre é acompanhado de cânticos recomendando a sua alma a Deus. De seguida, o seu corpo é queimado com respeito, mas sem lamentos, e ergue-se no local uma estrela onde estão gravados os títulos do defunto, De regresso a casa, lembram as suas ações e os traços do seu carácter, insistindo, entre os episódios da sua vida, na serenidade com que morreu. Esta comemoração de uma conduta virtuosa é para os vivos a mais eficaz exortações ao bem e a melhor homenagem que se pode prestar aos mortos. Estes estão presentes quando deles se fala, invisíveis apenas ao olhar pouco penetrante dos mortais. Os Bem-aventurados não se privariam do poder de se ransportarem onde querem, e cometeriam falta de ingratidao se não desejassem rever aqueles que lhes estiveram ligados na terra pela ternura e pelo amor mútuos, sentimentos que, pensam eles, devem subsistir após a morte, entre as pessoas de bem, num grau acrescido, não diminuído. Vêem assim os mortos a circular por entre os vivos, testemunhas dos seus actos e das suas palavras. Esta fé na presença tutelar dos mortos inspira-lhes mais confiança nos seus empreendimentos e desvia-os de fazer o mal em segredo."
"Cantarei a criadora dos homens e deuses - cantarei a Noite. Noite, fonte universal. Ó forte divindade ardendo com as estrelas, Sol negro, invadida pela paz e o tranquilo e múltiplo sono, ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias, Mãe do sonho, e Consoladora, onde as misérias repousam as campânulas de sangue, ó Embaladora, Cavaleira, Luz Negra, Amiga Geral. ó Incompleta, alternadamente terrestre e celeste, ó Arredondada no meio das forças tenebrosas, leve afastando a luz da casa dos mortos e de novo te afastando tu própria. A terrível Fatalidade é a mãe de todas as coisas, ó Noite Maravilhosa, Constelação Calma, Ternura Secreta do Tempo, escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena, e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo."
"De muita coisa é Zeus no Olimpo o Senhor
e muita coisa os deuses fazem sem contar.
Vimos o que não se esperava não realizar.
P'ra o que não se sabia o deus achar caminho.
Assim vistes o drama terminar."
Menina, amanhã de manhã
quando a gente acordar
quero te dizer que a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens.
Na hora ninguém escapa
de baixo da cama ninguém se esconde
e a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens vai
desabar sobre os homens.
Menina, ela mete medo
menina, ela fecha a roda
menina, não tem saída
de cima, de banda ou de lado.
Menina, olhe pra frente
menina, todo cuidado
não queira dormir no ponto
segure o jogo
atenção (de manhã)
Menina a felicidade
é cheia de graça
é cheia de lata
é cheia de praça
é cheia de traça.
Menina, a felicidade
é cheia de pano,
é cheia de pena
é cheia de sino
é cheia de sono.
Menina, a felicidade
é cheia de ano
é cheia de Eno
é cheia de hino
é cheia de ONU.
Menina, a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on.
Menina, a felicidade
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i
é cheia de o.
"Atendendo bem, é nesta gente derramada para fora do mercado e que escorre pela ladeira lateral, sentada no murete, sentada no chão, nesta gente que parece ser de outro tempo, não ser daqui, homens de chapéu, mulheres de escuro, lenço preto na cabeça, que propõem humildes couves a quem passa, cebolo, alhos para dispor, sementes de alface, pés de tomate, árvores pequeninas ávidas de terra, é nestas mãos gretadas, calosas, grossas, é daqui que ele suspeita derivar, é destes que ele sente ser pertença.
Levado na convincção de identidade rodopia com estes corpos velhos, vergados por afazeres chãos, num redemoinho endiabrado por feiras e festanças, bailaricos, pisas, desfolhas, crendices, procissões, milagres. Morre e ressuscita numa dança enlameada sobre as árvores, os campos, as casas, os currais. Com burros, porcos, galinhas, vacas e outras gémeas criaturas. E canta a terra. E crê na terra.
Por momentos."
"A minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor* e achou meio de demonstrar que dos dous césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio. Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doudos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios — fórmula Suetônio. Era fixa a minha ideia, fixa como… Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica.*** Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado. Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã… Não, a comparação não presta."
"Não sei se és parvo se és inteligente - Ao disfrutares vida de nabado Louvando um Deus, do qual te dizes crente, Que te livre das garras do diabo E te faça feliz eternamente.
Não vês que o teu bem-estar faz d'outra gente A dor, o sofrimento, a fome e a guerra? E tu não queres p'ra ti o céu e a terra... - Não te achas egoísta ou exigente?
Não creio nesse Deus que, na igreja. Escuta, dos beatos, confissões; Não posso crer num Deus que se maneja, Em troca de promessas e orações, P'ra o homem conseguir o que deseja
Se Deus quer que vivamos irmãmente, Quem cumpre esse dever por que receia As iras do divino padre eterno?... P'ra esses é o céu; porque o inferno É p'ra quem vive a vida à custa alheia!"
"Dêem uma volta pela cidade numa sonolenta tarde de domingo. (…) Que encontram? Postados como sentinelas em toda a periferia da cidade, milhares e milhares de mortais contemplam, hipnotizados, o oceano. Uns apoiam-se às estacas; outros sentam-se na beira dos molhes; outros namoram o arcaboiço dos navios que vêm da China; alguns sobem até ao topo dos mastros para desfrutar a perspetiva marinha ainda mais ampla. É todavia gente ligada à terra, gente que passa os dias da semana entre quatro paredes de cal e gesso – amarradas aos escritórios, colada aos bancos, debruçada sobre as escrivaninhas. Então porque se encontra aqui? Já não existem os belos prados verdes? Que força os arrasta para este lugar?
Mas vejam! Aí vem mais gente, encaminhando-se diretamente para a água, como se fosse mergulhar. Que coisa bizarra! Nada os satisfaz senão o limiar extremo da terra; não lhes basta passear à sombra dos armazéns, espalhados pelas redondezas. Não! Têm de se aproximar da água, tanto quanto possível, quase a caírem nela. E ali permanecem – quilómetros de basbaques, léguas… Homens da terra, todos eles, desaguam de becos e azinhagas, de ruas e avenidas, do Norte, do Leste, do Sul e do Oeste. E, contudo, formam um conjunto homogéneo. Será que são atraídos pelas agulhas magnéticas das bússolas de todos aqueles navios?
Continuem a olha… Imaginem-se agora no interior, numa região lacustre. Escolham qualquer caminho, ao acaso – nove vezes em cada dez ele conduz a um vale e deixa o viandante junto de uma lagoa cavada na corrente. Há magia, neste facto! Que o mais distraído dos homens se lance nas reflexões mais abstractas – se esse homem começar a andar é mais do que certo que os seus passos o levarão infalivelmente para junto da água, se água existir na região. Se alguma vez o leitor se encontrar a sofrer de sede, no grande deserto americano, tente a experiência, na hipótese de viajar na caravana um professor de metafísica. Sim, porque toda a gente sabe que a meditação e a água se encontram indissoluvelmente ligadas.
Observem agora um artista. O pintor deseja pintar a paisagem mais romântica, mais sonhadora, mais suavemente velada – o torrão mais encantador que se encontram em todo o vale do Saco. Qual é o principal elemento do seu quadro? Lá estão as grandes árvores com os rotundos troncos capazes de abrigar um eremita com o seu crucifixo; e o prado adormecido onde preguiça o gado; da vivenda, alcandorada à distância, escapa-se um lânguido fio de fumaça. No bosque distante serpenteia um caminho que se dirige para a crista da montanha, através dos confortes lavados por uma luz aveludada. Mas, embora o quadro seja muito belo e os pinheiros deixem cair as suas folhas, ligeiras como suspiros, sobre a cabeça do pastor, todo este encanto seria fútil se o olhar do zagal se não iluminasse com o reflexo ribeirinho que lhe serve de espelho.
Visitem as pradarias durante o mês de Junho, quando por infindáveis quilómetros uma pessoa se afunda no mar de lírios. Que falta aí para uma criatura se sentir plenamente satisfeita? A água! Não existe uma só gota em toda a redondeza… Se o Niagara fosse uma catarata de areia continuaria a haver quem fizesse uma viagem de milhares de quilómetros para ir vê-la? Porque motivo o pobre poeta do Tennessee, ao receber inesperadamente um punhado de moedas de prata, hesitou entre comprar a capa (de que estava bem precisado) e ir dar um passeio a Rockaway Beach? Porque será que quase todo o jovem robusto de corpo e espírito sente, uma vez por outra, um desejo louco de embarcar? Porque será que, ao efectuar a primeira viagem, o passageiro sente uma singular vibração quando descobre que a terra se perdeu para além do horizonte? Por que razão os antigos persas consideravam o mar como sagrado? Por que razão os gregos lhe atribuíam como divindade o próprio irmão de Júpiter? Por certo tudo isto tem o seu sentido. E, um sentido muito profundo, se nos recordarmos da história de Narciso que, desesperado pela suave e fugidia imagem que se refletia nas águas, nelas se afogou. Essa miragem, vemo-la em todos os rios e oceanos do mundo. É a imagem do fantasma inacessível da vida, onde se acha a chave de todo o enigma."
"No tocante à agro-pecuária, há uma história de três linhas que já se tornou um clássico. É essa em que à pergunta «De onde vem o leite?» muitas crianças respondem, sem titubear: «Do supermercado.». Noutras versões, a resposta é «Do pacote» (nos casos em que as crianças demonstram miopia precoce, hoje corrente), «Da Internet» (quando os pais recorrem às compras electrónicas) ou até «Da avó» (se for a avó a levar o leite para casa).
Mas esta questão, já com alguma longevidade, mormente nas metrópoles mais desenvolvidas, está a preocupar muitíssimas pessoas, em particular educadores de infância, certos pais (e até mães) e, nalguns casos, engenheiros de empresas leiteiras ou de fábricas de pacotes. E o diversificado conjunto de pessoas que com isto se preocupa decidiu tomar iniciativas, para enfrentar um problema civilizacional que ultrapassa as fronteiras de vários continentes, correndo o risco de alastrar aos restantes e às estações orbitrais.
(...)
consiste em montar quintas de pequena dimensão nos arrabaldes (ou periferias) das grandes cidades onde ainda haja alguns terrenos provisoriamente não destinados de imediato à construção de prédios, designados «espaços baldios» (ou mais propriamente stand-by barrens). Nesses terrenos, a referida fundação, cujo nome contamos conhecer em breve, vai instalar estábulos chamados «vacarias», onde ficarão à disposição grupos de vacas leiteiras pedagógicas, bem como equipas de pessoas chamadas «ordenhadoras», as quais, além de darem comida aos animais e limparem as respectivas «camas» (nome técnico), têm a missão de as «ordenhar» (idem), em conformidade com um organigrama destinado a receber grupos de crianças de creches e escolas que para ali deverão ser deslocados, quer queiram ou não queiram. Uma vez posto de pé esse complexo sistema, o restante programa deverá tornar-se bastante praticável: as crianças, em molhinhos cujo número ainda não foi superiormente decidido, são transportadas até aos estábulos, sentadas em banquinhos em redor de cada uma das vacas e, depois de silenciadas, sujeitas a uma aula, para aprenderem o novo paradigma segundo o qual «o leite vem da vaca», alterando-se assim prodigiosamente o conhecimento que até então possuíam. Alguns proeminentes pedagogos já tiveram oportunidade de declarar em diversos suportes que se trata de uma «verdadeira revolução nos níveis contemporâneos de conhecimento nivelado»."
"Qual é o preço da experiência?
Os homens a adquirem com uma canção?
Ganham sabedoria dançando nas ruas?
Não, ela é comprada pelo preço de tudo que um homem tem;
sua moradia, sua esposa, seus filhos.
A sabedoria é vendida num mercado sombrio onde ninguém vem comprar,
E no campo infecundo que o fazendeiro lavra em vão por seu pão.
É fácil vencer sob o sol do verão.
E na colheita cantar na carroça abarrotada de grãos.
É fácil dizer da cautela aos aflitos,
Falar das leis da prudência ao andarilho sem abrigo,
Ouvir o grito faminto do corvo na estação invernal,
Quando o sangue vermelho mistura-se ao vinho e ao tutano do cordeiro.
É tão fácil sorrir perante a ira da natureza,
Ouvir o uivo do cão ante a porta no inverno, e o boi mugindo no matadouro;
Ver um deus em cada brisa e uma bênção em cada tempestade.
Ouvir o som do amor no raio que arruína a casa do inimigo;
Regozijar-se diante da praga que toma o seu campo, e da doença que ceifa seus filhos,
Enquanto nossas oliveiras e nosso vinho cantam e riem na frente da porta,
e nossos filhos nos trazem frutas e flores.
Então o lamento e a dor estão quase esquecidos, assim como o escravo que roda o moinho,
E o escravo acorrentado, o pobre prisioneiro, e o soldado no campo de batalha,
Quando os ossos quebrados deixam-no gemendo à espera da morte feliz.
É fácil regozijar-se sob a tenda da prosperidade.
Eu poderia cantar e me regozijar dessa maneira: mas eu não sou assim."
"E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das falsificações industriais, os operários atravancam o Mercado em grandes grupos implorando: trabalho! Trabalho! A sua superabundância devia obrigá-los a refrear a sua paixão; pelo contrário, ela leva-a ao paroxismo. Mal uma possibilidade de trabalho de apresenta, logo se atiram a ela; então são doze, catorze horas que reclamam para estarem fartos até à saciedade e no dia seguinte ei-los de novo na rua, sem mais nada para alimentarem o seu vício. Todos os anos, em todas as indústrias, os despedimentos surgem com a regularidade das estações. Ao supertrabalho perigoso para o organism sucede-se o repouso absolute durante dois ou quatro meses; e, não havendo trabalho, não há a ração diária.
Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente encavilhado no coração dos operários; uma vez que as suas exigências abafam todos os outros instintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho exigida pela sociedade é forçosamente limitada pelo consumo e pela abundância de matéria-prima, por que razão devorar em seis meses o trabalho de todo o ano? Porque não distribuí-lo uniformemente por doze meses e forçar todos os operários a contentar-se com seis ou cinco horas por dia, durante o ano, em vez de apanhar indigestões de doze horas durante seis meses? Seguros da sua parte diária de trabalho, os operários já não se invejarão, já não se baterão para arrancarem mutuamente o trabalho das mãos e o pão da boca; então, não esgotados de corpo e de espírito, começarão a praticas as virtudes da preguiça."
"Avaliamos tudo em dinheiro, o que nos leva a praticar uma quantidade de ofícios totalmente inúteis e supérfluos, que mais não são que serviço do luxo e do prazer. Esta multidão dos operários de hoje, se estivesse repartida pelos sectores que utilizam verdadeiramente os produtos da Natureza para o bem de todos, criaria tais excedentes que o abaixamento dos preços impediria os operários de ganhar a vida. Afectem-se a trabalhos úteis todos aqueles que não produzem senão objectos supérfluos e, além deles, toda essa massa que se entorpece com a ociosidade e na mandriice, gente que esbanja todos os dias, do trabalho dos outros, o dobro do que aqueles que produzem e consomem, e logo vereis quão pouco tempo é necessário para produzir na quantidade necessária as coisas indispensáveis ou apenas úteis, desde que este seja são e natural".
"– Se não fosse pelo meu Joaquim, ninguém me apanhava a comer o cabrito de domingo na parvónia. – remata ele, balouçando nos calcanhares. Apreensiva com as ameaças e irregularidades do terreno, a mulher vai de caminho comprar calçado. Além das chinelas de trazer por casa, só tem sandálias de verão, sapatos e botins de salto alto. Disse-lhe o filho que ao redor da casa é tudo pedregoso e lamacento, já para não falar da bicharada miúda que se agarra com patas e ferrões a qualquer naco de pele desnudada. Queixas e receios à parte, o casal Pereira até considera este um sacrifício necessário pelo bem da família. Sobretudo por Joaquim, neto mais lindo não há, concordarei certamente assim que o vir, as fotos não fazem jus. E já que a cada mortal Deus entrega uma cruz para alombar, seja esta a deles. A via sacra é que, caramba, escusava de ser na Beira Alta."
Do magnífico blog "Mãe Preocupada".
(...)
"- Permita-me que me apresente - falou. - Eu chamo-me Alexander fürst Pückler. O, como dizer?, criador desse gelado - falou - foi um antepassado meu, um fürst Pückler muito brilhante, grande viajante, homem ilustrado, cujas principais paixões eram a botânica e a jardinagem. Claro, ele pensava, se é que alguma vez pensou nisso, que passaria para a, como dizer?, história por algum dos muitos opúsculos que escreveu e publicou, crónicas de viagem principalmente, mas não necessariamente crónicas de viagem para uso, e sim livrinhos que ainda hoje são encantadores e muito, como dizer?, lúcidos, enfim, lúcidos dentro do possível, livrinhos onde parecesse que a finalidade última de cada uma das suas viagens fosse examinar determinado jardim, às vezes jardins esquecidos, abandonados por Deus, entregues à própria sorte, e cuja graça o meu ilustre antepassado sabia encontrar no meio de tanto mato e de tanto desleixo. Os seus livrinhos, apesar do seu, como dizer?, revestimento botânico, estão cheios de observações engenhosas e através deles pode-se ter uma ideia bastante aproximada da Europa do seu tempo, uma Europa muitas vezes convulsa, cujas tempestades em certas ocasiões chegavam aos limites do castelo da família, situado, como o senhor deve saber, nas proximidades de Görlitz. Claro, o meu antepassado não era alheio às tempestades, do mesmo modo que não era alheio às vicissitudes da, como dizer?, condição humana. E portanto escrevia e publicava e à sua maneira, humilde mas com boa prosa alemã, alçava a voz contra a injustiça. Creio que não lhe interessava saber para onde vai a alma quando o corpo morre, embora também tenha escrito algumas páginas sobre isso. Interessava-lhe a dignidade e interessavam-lhe as plantas. Sobre a felicidade não disse uma palavra, suponho que porque a considerava algo estritamente privado e talvez, como dizer?, pantanoso e movediço. Tinha um grande sentido de humor, embora em algumas das suas páginas me pudesse contradizer com facilidade. E, provavelmente, já que não era um santo nem tampouco um homem valente, deve ter pensado sim na posteridade. No busto, na estátua equestre, nos in-fólios guardados para sempre numa biblioteca. O que nunca pensou foi que passaria para a história por dar o nome a uma combinação de gelados de três sabores. Isso eu posso garantir-lhe. E então, que acha?"
(...) - O público tem sorte, Tudo é do seu agrado: cones de gelado, concertos de rock, cantar, dançar, o amor, o ódio, a masturbação, cachorros-quentes, danças country, Jesus Cristo, patinagem, espiritualismo, capitalismo, comunismo, circuncisão, as bandas desenhadas, o Bob Hope, esquiar, pescar, homicídios, jogar bowling, discutir o que seja. As expectativas são baixas, tal como as experiências. São uma maralha fabulosa. - Mas que discurso. - Mas que público. - Pareces uma personagem do Huxley inicial a falar. - Acho que estás enganado. Estou desesperado. - Mas - disse o Hemingway -, os homens tornam-se intelectuais para não se sentirem desesperados. - Os homens tornam-se intelectuais por estarem com medo, não desesperados. - E a diferença entre estar com medo e desesperado é... - Bingo - respondi -, um intelectual! (...)
SOS Mundo.
"Fazermos" alguma coisa talvez passe por começarmos a ouvir, com mais atenção, os duros poemas deste grande cronista social.
Explicam muita coisa.
Há mulheres que trazem o mar nos olhos Não pela cor Mas pela vastidão da alma E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos Ficam para além do tempo Como se a maré nunca as levasse … Da praia onde foram felizes Há mulheres que trazem o mar nos olhos pela grandeza da imensidão da alma pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens… Há mulheres que são maré em noites de tardes e calma.
"Se puderes Sem angústia E sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado, Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças…"
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros. Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser. Este é o momento para o cigarro que não fumo. Inspirar [fundo], expirar [calmamente]. Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens. Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).
Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.
Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.
Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.