# 74 - Oh mar salgado, quanto desse sal são lágrimas de Portugal?





"Dêem uma volta pela cidade numa sonolenta tarde de domingo. (…) Que encontram? Postados como sentinelas em toda a periferia da cidade, milhares e milhares de mortais contemplam, hipnotizados, o oceano. Uns apoiam-se às estacas; outros sentam-se na beira dos molhes; outros namoram o arcaboiço dos navios que vêm da China; alguns sobem até ao topo dos mastros para desfrutar a perspetiva marinha ainda mais ampla. É todavia gente ligada à terra, gente que passa os dias da semana entre quatro paredes de cal e gesso – amarradas aos escritórios, colada aos bancos, debruçada sobre as escrivaninhas. Então porque se encontra aqui? Já não existem os belos prados verdes? Que força os arrasta para este lugar?

Mas vejam! Aí vem mais gente, encaminhando-se diretamente para a água, como se fosse mergulhar. Que coisa bizarra! Nada os satisfaz senão o limiar extremo da terra; não lhes basta passear à sombra dos armazéns, espalhados pelas redondezas. Não! Têm de se aproximar da água, tanto quanto possível, quase a caírem nela. E ali permanecem – quilómetros de basbaques, léguas… Homens da terra, todos eles, desaguam de becos e azinhagas, de ruas e avenidas, do Norte, do Leste, do Sul e do Oeste. E, contudo, formam um conjunto homogéneo. Será que são atraídos pelas agulhas magnéticas das bússolas de todos aqueles navios?

Continuem a olha… Imaginem-se agora no interior, numa região lacustre. Escolham qualquer caminho, ao acaso – nove vezes em cada dez ele conduz a um vale e deixa o viandante junto de uma lagoa cavada na corrente. Há magia, neste facto! Que o mais distraído dos homens se lance nas reflexões mais abstractas – se esse homem começar a andar é mais do que certo que os seus passos o levarão infalivelmente para junto da água, se água existir na região. Se alguma vez o leitor se encontrar a sofrer de sede, no grande deserto americano, tente a experiência, na hipótese de viajar na caravana um professor de metafísica. Sim, porque toda a gente sabe que a meditação e a água se encontram indissoluvelmente ligadas.

Observem agora um artista. O pintor deseja pintar a paisagem mais romântica, mais sonhadora, mais suavemente velada – o torrão mais encantador que se encontram em todo o vale do Saco. Qual é o principal elemento do seu quadro? Lá estão as grandes árvores com os rotundos troncos capazes de abrigar um eremita com o seu crucifixo; e o prado adormecido onde preguiça o gado; da vivenda, alcandorada à distância, escapa-se um lânguido fio de fumaça. No bosque distante serpenteia um caminho que se dirige para a crista da montanha, através dos confortes lavados por uma luz aveludada. Mas, embora o quadro seja muito belo e os pinheiros deixem cair as suas folhas, ligeiras como suspiros, sobre a cabeça do pastor, todo este encanto seria fútil se o olhar do zagal se não iluminasse com o reflexo ribeirinho que lhe serve de espelho.

Visitem as pradarias durante o mês de Junho, quando por infindáveis quilómetros uma pessoa se afunda no mar de lírios. Que falta aí para uma criatura se sentir plenamente satisfeita? A água! Não existe uma só gota em toda a redondeza… Se o Niagara fosse uma catarata de areia continuaria a haver quem fizesse uma viagem de milhares de quilómetros para ir vê-la? Porque motivo o pobre poeta do Tennessee, ao receber inesperadamente um punhado de moedas de prata, hesitou entre comprar a capa (de que estava bem precisado) e ir dar um passeio a Rockaway Beach? Porque será que quase todo o jovem robusto de corpo e espírito sente, uma vez por outra, um desejo louco de embarcar? Porque será que, ao efectuar a primeira viagem, o passageiro sente uma singular vibração quando descobre que a terra se perdeu para além do horizonte? Por que razão os antigos persas consideravam o mar como sagrado? Por que razão os gregos lhe atribuíam como divindade o próprio irmão de Júpiter? Por certo tudo isto tem o seu sentido. E, um sentido muito profundo, se nos recordarmos da história de Narciso que, desesperado pela suave e fugidia imagem que se refletia nas águas, nelas se afogou. Essa miragem, vemo-la em todos os rios e oceanos do mundo. É a imagem do fantasma inacessível da vida, onde se acha a chave de todo o enigma."



Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.