# 103 - Da eternidade



"Numa perseguição sem tréguas a Heitor pressionava o veloz Aquiles.
Tal como quando nas montanhas o cão espanta um gamo de veado,
levantando-o do seu leito, e persegue-o através de clareiras e vales;
e embora o gamo lhe escape, oculto no matagal,
o cão lhe descobre o rastro e corre até o encontrar —
assim Heitor não conseguiu esconder-se do veloz Pelida.
Quantas as vezes que ele tentava correr até aos portões
dos Dárdanos para se abrigar nas muralhas bem construídas,
na esperança de que os de cima repelissem Aquiles com dardos,
tantas eram as vezes que Aquiles se lhe antecipava, obrigando-o
a voltar para a planície. E ele não parava de correr ao lado da cidade.
Tal como quando num sonho quem persegue não alcança quem foge,
mas nem um consegue fugir, nem o outro consegue perseguir.
assim nem com os pés Aquiles alcançava Heitor, nem este escapava.
Ora como é que Heitor teria escapado do destino da morte,
se Apolo, pela última e derradeira vez, se não tivesse
dele aproximado, para lhe fortalecer e aligeirar os joelhos?

Mas o divino Aquiles fazia sinal ao seu povo com a cabeça,
e não autorizava que alvejassem Heitor com dardos amargos,
não alcançasse outro a glória, vindo ele como segundo.
Mas quando pela quarta vez chegaram às nascentes,
foi então que o Pai levantou a balança de ouro,
e nela colocou os dois destinos da morte irreversível:
o de Aquiles e o de Heitor domador de cavalos.
Pegou na balança pelo meio: desceu o dia fadado de Heitor
e partiu para o Hades. E Febo Apolo abandonou-o."

# 102 - Portrait de la jeune fille en feu

“Revi mentalmente a teoria do David, as suas palavras antes de me mandar à vida. «Juntamo-nos porque há a simpatia inicial, depois o enamoramento, mas também para que olhem por nós, nos tragam um chá ou um cobertor. Sabe bem haver quem se preocupe connosco, nos toque no braço, nos cabelos e nas mãos. Juntamo-nos porque é o que se faz há milhares de anos e o que se espera que façamos. Juntamo-nos para que as vidas se justifiquem e legitimem, ao assemelharem-se a todas as outras. É assim que se faz. Juntamo-nos e ficamos nivelados e amparados. Juntamo-nos porque acreditamos amar-nos. Temos filhos. Entramos para esse exército, que é também um corpo diplomático. Habituamo-nos. Não estamos presos, mas de quem é este livro, e aquele jarrão? De quem é esta casa, este filho? Os gestos habituais que conhecemos de cor ao acordarmos de manhã, fazemo-los porque estamos juntos ou porque nos pertencem? O que é meu e o que é teu? Seria bom estar só, uns tempos, sem os filhos, sem contas para pagar e sem obrigações; isso seria vida, mas urgente, agora, é chegar ao verão. Liquidar os atrasados com o subsídio de férias. Comprar roupas para as miúdas. Substituir o frigorífico que não congela há mais de dois meses. Descansar por 15 dias. Amamos aquele com o qual estamos juntos? Estamos juntos, não estamos? Chega de pormenores. Que interessa o resto? Que interessa quem amei mais? A minha mãe casou para se amparar, o tio Alberto amou toda a vida a cunhada e nem no leito de morte lho revelou, e a minha tia Inês negou-se ao rapaz por quem se apaixonou por estar prometida ao tio Alberto. Todos cumpriram as suas obrigações. Não terem acordado ao lado do objeto amado, não terem iniciado os gestos ou as palavras do amor não amputou a paixão. Amaram na presença e na ausência. É assim que se faz. O amor não anda ao nosso lado, o amor anda à solta nos peitos, como um pássaro engaiolado. Adormece-nos. Desperta-nos. Faz-nos sair e voltar a casa. Chorar. Rir. E se isto não é viver, o que é a vida?»

Revi palavras, gestos, olhares, chorei sem interrupção, até à hipnose dos sentidos, até adormecer e despertar e ser capaz de pronunciar uma única palavra, ideia, essência: David, David! Mais nada. Era meia-noite quando me recompus o suficiente para conduzir até casa.”

# 101 - No coração, talvez

No coração, talvez, ou diga antes: 
Uma ferida rasgada de navalha, 
Por onde vai a vida, tão mal gasta. 
Na total consciência nos retalha. 
O desejar, o querer, o não bastar, 
Enganada procura da razão 
Que o acaso de sermos justifique, 
Eis o que dói, talvez no coração.

# 100 - O burguês fidalgo

 
 "O tempo presente e o tempo passado 
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro 
E o tempo futuro contido no tempo passado. 
Se todo o tempo é eternamente presente 
Todo o tempo é irredimível. 
O que poderia ter sido é uma abstração 
Que fica uma possibilidade perpétua 
Somente num mundo de especulação. 
O que poderia ter sido e o que foi 
Apontam para um só fim, sempre presente. 
 Sons de passos ecoam na memória, 
Descem o caminho que nós não seguimos 
 Em direção à porta por nós nunca aberta 
 Para o jardim de rosas. As minhas palavras ecoam 
Assim, no teu espírito. 
                                    Mas com que propósito 
 Perturbam o pó numa taça de folhas de rosa
Não sei. 
                 Outros ecos 
Habitam o jardim. 
Vamos seguir?"

# 99 - Memórias das Gândaras e da Bairrada

I
Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à brama impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.

II
Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de morros sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».

III
É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.

IV
Ao crepúsculo, desceu enfim a escada e entrou na atmosfera espessa do corredor; parecia flutuar; tinha o rosto sombrio, os cabelos caídos para os olhos e jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampôlas de soro nutritivo diluídas em leite. Empurrou devagar a porta da cozinha, onde o fogo tornava o cobre cor de sangue, e lembrou-se outra vez dos bichos imolados sobre as lajes do pátio. Havia um vulto debruçado para o lume, uma criada com certeza, entregue ao ritual das chamas: alimento, calor, sobrevivência diária. Continuou em frente no mesmo passo aéreo e saiu da cozinha; se alguém o visse agora pensaria num caso de sonambulismo: «quando acordar regressará»; talvez, mas as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criança.

# 98 - Noites gandarezas

(hoje, sem mais nada a dizer)

# 97 - Tempo


"O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.

Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbado de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde."

# 96 - Demora tempo a sermos Homens


(...)

(A vida cai morta. Assim que a Vida cai, entra pela porta do berço o Mordomo, que se vai prostar à porta da tumba, fazendo repetidas reverênciasm quando a Morte, arrastando a Vida, abandornar a cena)
 
MORTE
Vês como falham os projetos fúteis,
Que, por vaidade, disseste ter feito?
Não têm base, grandezas inúteis,
Caem por si: só eu as aproveito.

(A Morte leva a Vida de rastos pela porta da tumba, desaparecendo ambas da cena. O Mordomo dirige-se então para a porta do berço, dando entrada, com repetidas vénias, à Vida Útil)

VIDA ÚTIL
Sou a verdadeira vida,
 Limpa, sem hipocrisias,
Completamente despida
De sofismas, fantasias,
Pelas quais fui impedida
De melhorar nossos dias.

(reparando no Mordomo)

Você, que faz?...

MORDOMO
(enfático)
Cumprimentos,
Vénias e mais cortesias;
Conforme as categorias;
Assim faço os cumprimentos.

VIDA ÚTIL
Mas quem é? Aguarda alguém?

MORDOMO
Sou o preconceito, eu...

VIDA ÚTIL
(interrompendo)
Siga, que também morreu,
Já não faz falta a ninguém,
Vá atrás da vida morta.

(o Mordomo procura sair pela porta do berço, mas a Vida Útil opõe-se, indicando-lhe a porta da tumba)

Saia por aquela porta,
porque é inútil também.

(o Mordomo sai então pela porta da tumba, muito abatido)

Viram como sucumbiu?...
A vida dos artíficios,
Das ilusões e dos vícios,
Como era falsa, caiu.

Há-de cair, recair,
Até se regenear,
Para que possa ficar
Como há-de ser no porvir.

Eu sou a vida a seguir,
Escola da humanidade;
Sou aquilo que a vaidade
Não conseguiu destruir.

Sou a vida; vou seguindo
Com vontade e persitência,
Aos vindouros transmitindo
Todo o bem quanto a ciência
P'ra o mundo for produzindo.

CAI O PANO

# 95 - O resto é silêncio (que resto?)


"Volto, pois, a casa. Mas a casa,
a existência não são apenas coisas que li?
E o que encontrarei
se não o que deixo: palavras?

Eu, isto é, palavras falando,
e falando me perdendo
entre estando e sendo.
Alguma vez, quando

havia começo
e não inércia
quando era cedo
e não parecia,

as minhas palaras puderam estar
onde sempre estiveram:
no apavorado lugar
onde sou o silêncio."

# 94 - O vírus Pedro & Inês e a "arte" de governar



REI: Ninguém menos é rei, que quem tem reino. Ah, que não é isto estado, é cativeiro,de muitos desejado, mas mal crido,uma servidão pomposa, um grã trabalhoescondido sob nome de descanso.Aquele é rei somente que assi vive(inda que cá seu nome nunca s’ouça)que de medo, e desejo, e d’esperançalivre passa seus dias. Ó bons dias,com que eu todos meus anos tão cansadostrocara alegremente! Temo os homens,com outros dissimulo; outros não possocastigar, ou não ouso. Um rei não ousa.Também teme seu povo, também sofre.Também suspira, e geme, e dissimula.Não sou rei, sou cativo: e tão cativocomo quem nunca tem vontade livre.

# 93 - A histórica exportação das fogueiras de São João


Naquele lugar servem-nos tabaco em lugar
de vinho
em Porto Rico cheira a erva santa de Santo
Domingo
tão doce e sentida, chupada e contida no peito
tão só
sorvem como sumos pelas bocas em fumos pelos narizes
em pó
por baixo das linhas quentes tropicais são mais
cristalinas
música de búzios, dos atabalinhos, de campaínhas e buzinas,
transmarinas

Escarabulha, salta, pula, pincha, fazem muitas mil doidices, quem o disse?
De tal maneira a marinhar p´ra não se deitarem ao mar
Uns atavam-nos uns aos outros,
pelas gambias, pelos cotos
Esvoaça, avoa, abeija a ala pelas ventas extasia, quem diria?
Imitam aves o que é raro
e eu até sofro do faro
Um vai tonto e outro tolo
pois tanta côdea é pró miolo

A chusma de gulosos dedilha folhas secas, viciosos
canudinhos
em extase escondidos de tudo areou perdeu o tino
dos caminhos
e andamos ao pairo sem norte nem sol no desvairo
das folias
se o piloto trás dois nortes pelo seu sol outro em sua
fantasia
e as ilhas deste mundo sem bóias que as prenda lá no fundo
deste mar
andam sobre as águas bailam pelas fráguas como bóias a bailar
a boiar

Escarabulha, salta, pula, pincha, fazem muitas mil doidices, quem o disse?
De tal maneira a marinhar p´ra não se deitarem ao mar
Uns atavam-nos uns aos outros,
pelas gambias, pelos cotos
Esvoaça, avoa, abeija a ala pelas ventas extasia, quem diria?
Imitam aves o que é raro
e eu até sofro do faro
Um vai tonto e outro tolo
pois tanta côdea é pró miolo

# 92 - E depois?



"Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Siabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e deportas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas."

# 91 - A preparar as fogueiras de São João


Nasci exactamente no teu dia —
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
Mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração —
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.

Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos, naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu —
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António —
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?

Tirado daqui.

# 90 - Birdwatching


Primeiro pensa-se nas estradas,
nos blocos de pisos
de vinte andares,
nas redes eléctricas
que irão abastecer
centenas de milhares
de aparelhos televisivos.
Enterram-se redes quilométricas
de tubagens de ida e de volta;
cobrem-se com cimento e cinza
grandes porções
aplainadas de campo,
e ordenadamente colocam-se ali
os carros,
espalham-se os cartazes publicitáios
por todos os sítios vagos oportunos
e põem-se em marcha
os poderosos motores
da ventilação artificial.
Por último, polvilha-se tudo
com seres humanos
até não caberem mais.
E começa-se então a viver.

Pois... era este fim-de-semana.

# 89 - Confinamento "rural"



O ermita caminha apressado
em direção à poalha
onde a refração desponta silenciosa,
o ermita pesa os passos
consciente que dói pisar pedras
e recolhe dentro de si malmequeres
e sonhos principalmente,
deixa-se arrepiar pelo extraordinário
suspeita que sabe e que isso o trama
colide no outro propositadamente
porque há algo tremendo a ligar,
traz na mão rasgões e rabiscos
e traz amor principalmente,
embora manchadas as vestes
há um brilho no peito
uma torre na noite
a mão escancarada a flor seca
a morte anunciando:
caminha despido e sossegado
porque o que rasga a crosta, regenera a carne
porque a solidão abre caminho para o amor.

Porque é talvez um dos meus preferidos poemas da Sandra Santos, "roubado" do seu magnífico Éter.

# 88 - Uma revolução dissimulada numa pandemia




Dissimulamos, mas no nosso dissímulo
não há engano, embora, encolhidos,
também a nossa rejeição se vinge.
Dissimulamos
porque não podemos agir de outra maneira,
sem forças para alterar agora o curso
tendencioso das coisas,
e esperamos, no duelo,
que a sorte inverta a sua andadura
e nos oferça um errar menos perverso
onde assestar de novo os nossos dardos.
Dissimulamos porque ainda temos força
para levar em frente, altivos, o nosso duelo,
para, chorando a sós,
suportar a dor com digno semblante.

Talvez com outra têmpera pudéssemos virar
o curso inelutável da vida
e fazê-lo rodar mais sorridente.
Talvez, com outros actos, pudéssemos cavar
um outro sulco mais fértil e nele, afinal,
colher menos enganos.
Não é certo. Talvez o seja, às vezes.

Não pretendemos esborratar os nossos passos
para que pareçam mais incertos.
Demo-los, e a eles nos sujeitamos,
mas não mereciam tanto duelo.

Não somos culpados de um errar pouco temeroso,
de um sofrer próprio e alheio. Não queremos
ser culpados de existir,
não aceitaremos esse dislate.
Arriscámos, sem mais acerto,
num devir demasiado rigído,
demasiado tendencioso da vida,
mas mesmo na própria dor
olhamos altivos o seu curso e maldizemos,
não os nossos desencontros,
mas apenas o seu errar previsto,
sem aceitar culpa nenhuma de estar vivos.

Não pediremos perdão por termos sido.

# 87 - A sagração da primavera vírica



"Vamos beber esta noite de ânimo ligeiro,
Tão alegres e bem-dispostos, para amar
Como as bolhas que fervem na aba das ondas,
E quebram nos lábios quando se encontram"

# 86 - Sou poooovooooo *


«À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!»

*daqui e para aqui.


Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.