# 78 - À espera de Godot





"Atendendo bem, é nesta gente derramada para fora do mercado e que escorre pela ladeira lateral, sentada no murete, sentada no chão, nesta gente que parece ser de outro tempo, não ser daqui, homens de chapéu, mulheres de escuro, lenço preto na cabeça, que propõem humildes couves a quem passa, cebolo, alhos para dispor, sementes de alface, pés de tomate, árvores pequeninas ávidas de terra, é nestas mãos gretadas, calosas, grossas, é daqui que ele suspeita derivar, é destes que ele sente ser pertença.
Levado na convincção de identidade rodopia com estes corpos velhos, vergados por afazeres chãos, num redemoinho endiabrado por feiras e festanças, bailaricos, pisas, desfolhas, crendices, procissões, milagres. Morre e ressuscita numa dança enlameada sobre as árvores, os campos, as casas, os currais. Com burros, porcos, galinhas, vacas e outras gémeas criaturas. E canta a terra. E crê na terra.
Por momentos."

# 77 - Vindimas



quero só
o silêncio da vela.
o afogar-me
na temperatura
da cera
quero só
o silêncio de volta:
infinituar-me
em poros que hajam
num chão de ser cera

*
que língua falam os pássaros
de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
– lento manancial de céus.

os pássaros
são mais sabedores.

*
tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.

# 76 - Brexit?! Nã...Avante, San la Muerte Cumbia Club!





"A minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor* e achou meio de demonstrar que dos dous césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doudos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios — fórmula Suetônio.
Era fixa a minha ideia, fixa como… Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica.*** Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã… Não, a comparação não presta."
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.