# 65 - À procura de várias revoluções, com fé em realizar (algumas) utopias




"Avaliamos tudo em dinheiro, o que nos leva a praticar uma quantidade de ofícios totalmente inúteis e supérfluos, que mais não são que serviço do luxo e do prazer. Esta multidão dos operários de hoje, se estivesse repartida pelos sectores que utilizam verdadeiramente os produtos da Natureza para o bem de todos, criaria tais excedentes que o abaixamento dos preços impediria os operários de ganhar a vida. Afectem-se a trabalhos úteis todos aqueles que não produzem senão objectos supérfluos e, além deles, toda essa massa que se entorpece com a ociosidade e na mandriice, gente que esbanja todos os dias, do trabalho dos outros, o dobro do que aqueles que produzem e consomem, e logo vereis quão pouco tempo é necessário para produzir na quantidade necessária as coisas indispensáveis ou apenas úteis, desde que este seja são e natural".

# 64 - Beijar a cruz




"– Se não fosse pelo meu Joaquim, ninguém me apanhava a comer o cabrito de domingo na parvónia. – remata ele, balouçando nos calcanhares.

Apreensiva com as ameaças e irregularidades do terreno, a mulher vai de caminho comprar calçado. Além das chinelas de trazer por casa, só tem sandálias de verão, sapatos e botins de salto alto. Disse-lhe o filho que ao redor da casa é tudo pedregoso e lamacento, já para não falar da bicharada miúda que se agarra com patas e ferrões a qualquer naco de pele desnudada. Queixas e receios à parte, o casal Pereira até considera este um sacrifício necessário pelo bem da família. Sobretudo por Joaquim, neto mais lindo não há, concordarei certamente assim que o vir, as fotos não fazem jus. E já que a cada mortal Deus entrega uma cruz para alombar, seja esta a deles. A via sacra é que, caramba, escusava de ser na Beira Alta."
Do magnífico blog "Mãe Preocupada".

# 63 - Lord of Love



(...)
"- Permita-me que me apresente - falou. - Eu chamo-me Alexander fürst Pückler. O, como dizer?, criador desse gelado - falou - foi um antepassado meu, um fürst Pückler muito brilhante, grande viajante, homem ilustrado, cujas principais paixões eram a botânica e a jardinagem. Claro, ele pensava, se é que alguma vez pensou nisso, que passaria para a, como dizer?, história por algum dos muitos opúsculos que escreveu e publicou, crónicas de viagem principalmente, mas não necessariamente crónicas de viagem para uso, e sim livrinhos que ainda hoje são encantadores e muito, como dizer?, lúcidos, enfim, lúcidos dentro do possível, livrinhos onde parecesse que a finalidade última de cada uma das suas viagens fosse examinar determinado jardim, às vezes jardins esquecidos, abandonados por Deus, entregues à própria sorte, e cuja graça o meu ilustre antepassado sabia encontrar no meio de tanto mato e de tanto desleixo. Os seus livrinhos, apesar do seu, como dizer?, revestimento botânico, estão cheios de observações engenhosas e através deles pode-se ter uma ideia bastante aproximada da Europa do seu tempo, uma Europa muitas vezes convulsa, cujas tempestades em certas ocasiões chegavam aos limites do castelo da família, situado, como o senhor deve saber, nas proximidades de Görlitz. Claro, o meu antepassado não era alheio às tempestades, do mesmo modo que não era alheio às vicissitudes da, como dizer?, condição humana. E portanto escrevia e publicava e à sua maneira, humilde mas com boa prosa alemã, alçava a voz contra a injustiça. Creio que não lhe interessava saber para onde vai a alma quando o corpo morre, embora também tenha escrito algumas páginas sobre isso. Interessava-lhe a dignidade e interessavam-lhe as plantas. Sobre a felicidade não disse uma palavra, suponho que porque a considerava algo estritamente privado e talvez, como dizer?, pantanoso e movediço. Tinha um grande sentido de humor, embora em algumas das suas páginas me pudesse contradizer com facilidade. E, provavelmente, já que não era um santo nem tampouco um homem valente, deve ter pensado sim na posteridade. No busto, na estátua equestre, nos in-fólios guardados para sempre numa biblioteca. O que nunca pensou foi que passaria para a história por dar o nome a uma combinação de gelados de três sabores. Isso eu posso garantir-lhe. E então, que acha?"
(...)

# 62 - A sul de nenhum norte



(...)
- O público tem sorte, Tudo é do seu agrado: cones de gelado, concertos de rock, cantar, dançar, o amor, o ódio, a masturbação, cachorros-quentes, danças country, Jesus Cristo, patinagem, espiritualismo, capitalismo, comunismo, circuncisão, as bandas desenhadas, o Bob Hope, esquiar, pescar, homicídios, jogar bowling, discutir o que seja. As expectativas são baixas, tal como as experiências. São uma maralha fabulosa.
- Mas que discurso.
- Mas que público.
- Pareces uma personagem do Huxley inicial a falar.
- Acho que estás enganado. Estou desesperado.
- Mas - disse o Hemingway -, os homens tornam-se intelectuais para não se sentirem desesperados.
- Os homens tornam-se intelectuais por estarem com medo, não desesperados.
- E a diferença entre estar com medo e desesperado é...
- Bingo - respondi -, um intelectual!
(...)
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.