# 46 - Não és os Outros






"Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
Teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante."

# 45 - De verão em verão até perfazer 34 primaveras



Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.

Anda o cego a tocar La Violotera,
e eu a vê-lo e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar

Que riso perto, que aflição distante,
que infíma débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta draga carburante,
rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?

Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele, e a mim.

# 44 - A loja do mestre Hermeto "abriu" em Espinho




a loja do mestre Hermeto
tem a forma dum coreto
ele usa búzios do mar
com zumbidos de insecto
junta guizos de embalar
ao som do martelo-pilão
e assim ele faz
assim faz a percussão

a loja do mestre Hermeto
tem ao balcão um cigano
tocando a sua guitarra
tem a cauda dum piano
em cima duma fanfarra
tudo junto em sintonia
assim faz a harmonia

anda, vem daí
vem daí, vou-te levar
à loja do mestre Hermeto
anda, vou-te levar

na loja do mestre Hermeto
há o canto dum riacho
um compasso corredor
há um galho contrabaixo
há um canário tenor
é quem mais se desafia
um canário tenor
disputando a melodia

vem daí vais-te passar
tu nem vais acreditar
à loja do mestre Hermeto
vão doutores e analfabetos
na lógica do mestre Hermeto
a música não tem classe
é uma casa de passe
onde se passam carretos

A versão do disco voador dos Clã: https://bit.ly/2NhxZBa
O último do Hermeto Pacoal & Grupo: https://youtu.be/B17bz0x21dA

# 43 - A (im)possibilidade de uma ilha



E o mar que me sufoca, e a areia,
A procissão dos instantes que se sucedem
Como aves que pairam docemente sobre Nova Iorque,

Como grandes aves de voo inexorável.

Vamos! Chegou o momento de quebrar a concha
E de ir ao encontro do mar contilante
Por novos caminhos que os nossos passos conhecem
Que seguiremos juntos, hesitantes de fraqueza.

# 42 - Crónicas sobre a fé numa terra ardente



"E parecia aquele Tejo
este rio doirado
parecia até que tu vinhas
comigo a meu lado
ou seria das flores
e das matas cheirosas
das madressilvas dos frutos
das ervas babosas

E pareciam campinas
vales tão estendidos
pareciam mesmo os teus braços
que me abraçam cingidos
ou seria das silvas
do gengibre do benjoim
do cheiro daquela chuva
dos cacimbos enfim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce

E parecia verão
no imenso arvoredo
parecia até que dizias
qualquer coisa em segredo
ou seria dos dias
muito quedos
sem fim
das noites
muito melhor
assombradas
assim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce"
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.