# 83 - Fora do Lugar



1. 
Na acelaração da velocidade
que a máquina omnipresente ordena,
já rumo a Marte e acumulando drestroços
vamos morrendo um pouco mais
uns para os outros.

Por falta de tempo.

Com a exaustão a apoderar-se
do âmago do mundo,
na lunar paisagem interior
alastram os buracos negros
por onde a luz se despenha,

2.
Não sabemos ainda
para que mundo opaco nos arrasta
o peso sombrio
do nosso obscuro coração.

Não sabemos
que estranhas substâncias
nos deslocam,
que inquietas ambições
nos mobilizam
por sobre a devastada
imensidão da terra
- rumo a esse antro
onde para sempre 
iremos residir.

3.
Erguer o ar que a voz impele
com o seu sopro
- esta voz nua, desarmada,
cujo incerto destino
nos deixa entregues uns aos outros
como oferenda sagrada
ou pulsação de guerra.

Erguer o ar assim lavrado
pela fome e a sede de outro mundo neste,
um ar que limpe e nos liberte,
do grande medo
que vai trancando as portas
na geografia
do nosso próprio rosto.

4.
Quando emudece o ar
e sobre a terra se petrifica o silêncio - 

quando o sopro se esvanece nos incectos
e na espessura se some a sua vibração -

quando a água pára, retesada,
e o seu movimento se suspende -

quando as árvores se calam
e as raízes, quietas, ficam de atalaia -

o furor mecânico dos homens
vai atingir um novo patamar.

5.
Quem não quer morrer
ficando em vida
e se debate
a meio do histérico desprezo
que a opulência cria -

quem nega o desespero
de ver um dia iluminado e livre
o rosto humano,
sagrada e fulgurante
a terra que nos nutre -

tem de acreditar
no corpo crepitante das crianças,
na dádiva de luz
que irrompe
do seu lume.

Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.