"Numa perseguição sem tréguas a Heitor pressionava o veloz Aquiles. Tal como quando nas montanhas o cão espanta um gamo de veado, levantando-o do seu leito, e persegue-o através de clareiras e vales; e embora o gamo lhe escape, oculto no matagal, o cão lhe descobre o rastro e corre até o encontrar — assim Heitor não conseguiu esconder-se do veloz Pelida. Quantas as vezes que ele tentava correr até aos portões dos Dárdanos para se abrigar nas muralhas bem construídas, na esperança de que os de cima repelissem Aquiles com dardos, tantas eram as vezes que Aquiles se lhe antecipava, obrigando-o a voltar para a planície. E ele não parava de correr ao lado da cidade. Tal como quando num sonho quem persegue não alcança quem foge, mas nem um consegue fugir, nem o outro consegue perseguir. assim nem com os pés Aquiles alcançava Heitor, nem este escapava. Ora como é que Heitor teria escapado do destino da morte, se Apolo, pela última e derradeira vez, se não tivesse dele aproximado, para lhe fortalecer e aligeirar os joelhos?
Mas o divino Aquiles fazia sinal ao seu povo com a cabeça, e não autorizava que alvejassem Heitor com dardos amargos, não alcançasse outro a glória, vindo ele como segundo. Mas quando pela quarta vez chegaram às nascentes, foi então que o Pai levantou a balança de ouro, e nela colocou os dois destinos da morte irreversível: o de Aquiles e o de Heitor domador de cavalos. Pegou na balança pelo meio: desceu o dia fadado de Heitor e partiu para o Hades. E Febo Apolo abandonou-o."
“Revi mentalmente a
teoria do David, as suas palavras antes de me mandar à vida. «Juntamo-nos
porque há a simpatia inicial, depois o enamoramento, mas também para que olhem
por nós, nos tragam um chá ou um cobertor. Sabe bem haver quem se preocupe
connosco, nos toque no braço, nos cabelos e nas mãos. Juntamo-nos porque é o
que se faz há milhares de anos e o que se espera que façamos. Juntamo-nos para que
as vidas se justifiquem e legitimem, ao assemelharem-se a todas as outras. É
assim que se faz. Juntamo-nos e ficamos nivelados e amparados. Juntamo-nos
porque acreditamos amar-nos. Temos filhos. Entramos para esse exército, que é também
um corpo diplomático. Habituamo-nos. Não estamos presos, mas de quem é este
livro, e aquele jarrão? De quem é esta casa, este filho? Os gestos habituais
que conhecemos de cor ao acordarmos de manhã, fazemo-los porque estamos juntos
ou porque nos pertencem? O que é meu e o que é teu? Seria bom estar só, uns
tempos, sem os filhos, sem contas para pagar e sem obrigações; isso seria vida,
mas urgente, agora, é chegar ao verão. Liquidar os atrasados com o subsídio de férias.
Comprar roupas para as miúdas. Substituir o frigorífico que não congela há mais
de dois meses. Descansar por 15 dias. Amamos aquele com o qual estamos juntos?
Estamos juntos, não estamos? Chega de pormenores. Que interessa o resto? Que
interessa quem amei mais? A minha mãe casou para se amparar, o tio Alberto amou
toda a vida a cunhada e nem no leito de morte lho revelou, e a minha tia Inês
negou-se ao rapaz por quem se apaixonou por estar prometida ao tio Alberto.
Todos cumpriram as suas obrigações. Não terem acordado ao lado do objeto amado,
não terem iniciado os gestos ou as palavras do amor não amputou a paixão.
Amaram na presença e na ausência. É assim que se faz. O amor não anda ao nosso
lado, o amor anda à solta nos peitos, como um pássaro engaiolado. Adormece-nos.
Desperta-nos. Faz-nos sair e voltar a casa. Chorar. Rir. E se isto não é viver,
o que é a vida?»
Revi palavras, gestos, olhares, chorei sem interrupção,
até à hipnose dos sentidos, até adormecer e despertar e ser capaz de pronunciar
uma única palavra, ideia, essência: David, David! Mais nada. Era meia-noite
quando me recompus o suficiente para conduzir até casa.”
Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à brama impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.
II
Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de morros sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».
III
É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.
IV Ao crepúsculo, desceu enfim a escada e entrou na atmosfera espessa do corredor; parecia flutuar; tinha o rosto sombrio, os cabelos caídos para os olhos e jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampôlas de soro nutritivo diluídas em leite. Empurrou devagar a porta da cozinha, onde o fogo tornava o cobre cor de sangue, e lembrou-se outra vez dos bichos imolados sobre as lajes do pátio. Havia um vulto debruçado para o lume, uma criada com certeza, entregue ao ritual das chamas: alimento, calor, sobrevivência diária. Continuou em frente no mesmo passo aéreo e saiu da cozinha; se alguém o visse agora pensaria num caso de sonambulismo: «quando acordar regressará»; talvez, mas as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criança.
"O tempo é um velho corvo de olhos turvos, cinzentos. Bebe a luz destes dias só dum sorvo como as corujas o azeite dos lampadários bentos. E nós sorrimos, pássaros mortos no fundo dum paul dormimos. Só lá do alto do poleiro azul o sol doirado e verde, o fulvo papagaio (estou bêbado de luz, caio ou não caio?) nos lembra a dor do tempo que se perde."
(A vida cai morta. Assim que a Vida cai, entra pela porta do berço o Mordomo, que se vai prostar à porta da tumba, fazendo repetidas reverênciasm quando a Morte, arrastando a Vida, abandornar a cena) MORTE Vês como falham os projetos fúteis, Que, por vaidade, disseste ter feito? Não têm base, grandezas inúteis, Caem por si: só eu as aproveito.
(A Morte leva a Vida de rastos pela porta da tumba, desaparecendo ambas da cena. O Mordomo dirige-se então para a porta do berço, dando entrada, com repetidas vénias, à Vida Útil)
VIDA ÚTIL Sou a verdadeira vida, Limpa, sem hipocrisias, Completamente despida De sofismas, fantasias, Pelas quais fui impedida De melhorar nossos dias. (reparando no Mordomo) Você, que faz?... MORDOMO (enfático) Cumprimentos, Vénias e mais cortesias; Conforme as categorias; Assim faço os cumprimentos. VIDA ÚTIL Mas quem é? Aguarda alguém? MORDOMO Sou o preconceito, eu... VIDA ÚTIL (interrompendo) Siga, que também morreu, Já não faz falta a ninguém, Vá atrás da vida morta. (o Mordomo procura sair pela porta do berço, mas a Vida Útil opõe-se, indicando-lhe a porta da tumba) Saia por aquela porta, porque é inútil também. (o Mordomo sai então pela porta da tumba, muito abatido) Viram como sucumbiu?... A vida dos artíficios, Das ilusões e dos vícios, Como era falsa, caiu. Há-de cair, recair, Até se regenear, Para que possa ficar Como há-de ser no porvir. Eu sou a vida a seguir, Escola da humanidade; Sou aquilo que a vaidade Não conseguiu destruir. Sou a vida; vou seguindo Com vontade e persitência, Aos vindouros transmitindo Todo o bem quanto a ciência P'ra o mundo for produzindo. CAI O PANO
"Volto, pois, a casa. Mas a casa, a existência não são apenas coisas que li? E o que encontrarei se não o que deixo: palavras? Eu, isto é, palavras falando, e falando me perdendo entre estando e sendo. Alguma vez, quando havia começo e não inércia quando era cedo e não parecia, as minhas palaras puderam estar onde sempre estiveram: no apavorado lugar onde sou o silêncio."
REI: Ninguém menos é rei, que quem tem reino. Ah, que não é isto estado, é cativeiro,de muitos desejado, mas mal crido,uma servidão pomposa, um grã trabalhoescondido sob nome de descanso.Aquele é rei somente que assi vive(inda que cá seu nome nunca s’ouça)que de medo, e desejo, e d’esperançalivre passa seus dias. Ó bons dias,com que eu todos meus anos tão cansadostrocara alegremente! Temo os homens,com outros dissimulo; outros não possocastigar, ou não ouso. Um rei não ousa.Também teme seu povo, também sofre.Também suspira, e geme, e dissimula.Não sou rei, sou cativo: e tão cativocomo quem nunca tem vontade livre.
Naquele lugar servem-nos tabaco em lugar de vinho em Porto Rico cheira a erva santa de Santo Domingo tão doce e sentida, chupada e contida no peito tão só sorvem como sumos pelas bocas em fumos pelos narizes em pó por baixo das linhas quentes tropicais são mais cristalinas música de búzios, dos atabalinhos, de campaínhas e buzinas, transmarinas Escarabulha, salta, pula, pincha, fazem muitas mil doidices, quem o disse? De tal maneira a marinhar p´ra não se deitarem ao mar Uns atavam-nos uns aos outros, pelas gambias, pelos cotos Esvoaça, avoa, abeija a ala pelas ventas extasia, quem diria? Imitam aves o que é raro e eu até sofro do faro Um vai tonto e outro tolo pois tanta côdea é pró miolo A chusma de gulosos dedilha folhas secas, viciosos canudinhos em extase escondidos de tudo areou perdeu o tino dos caminhos e andamos ao pairo sem norte nem sol no desvairo das folias se o piloto trás dois nortes pelo seu sol outro em sua fantasia e as ilhas deste mundo sem bóias que as prenda lá no fundo deste mar andam sobre as águas bailam pelas fráguas como bóias a bailar a boiar Escarabulha, salta, pula, pincha, fazem muitas mil doidices, quem o disse? De tal maneira a marinhar p´ra não se deitarem ao mar Uns atavam-nos uns aos outros, pelas gambias, pelos cotos Esvoaça, avoa, abeija a ala pelas ventas extasia, quem diria? Imitam aves o que é raro e eu até sofro do faro Um vai tonto e outro tolo pois tanta côdea é pró miolo
"Primeiro sabem-se as respostas. As perguntas chegam depois, como aves voltando a casa ao fim da tarde e pousando, uma a uma, no coração quando o coração já se recolheu de perguntas e de respostas. Que coração, no entanto, pode repousar com o restolhar de asas no telhado? A dúvida agita os cortinados e nos sítios mais íntimos da vida acorda o passado. Porquê, tão tardo, o passado? Se ficou por saldar algo com Deus ou com o Siabo e se é o coração o saldo porquê agora, Cobrança, quando medo e esperança se recolheram também sob lembranças extenuadas? Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas, e de poços, e deportas entreabertas, e sonham no escuro as coisas acabadas."
O ermita caminha apressado em direção à poalha onde a refração desponta silenciosa, o ermita pesa os passos consciente que dói pisar pedras e recolhe dentro de si malmequeres e sonhos principalmente, deixa-se arrepiar pelo extraordinário suspeita que sabe e que isso o trama colide no outro propositadamente porque há algo tremendo a ligar, traz na mão rasgões e rabiscos e traz amor principalmente, embora manchadas as vestes há um brilho no peito uma torre na noite a mão escancarada a flor seca a morte anunciando: caminha despido e sossegado porque o que rasga a crosta, regenera a carne porque a solidão abre caminho para o amor.
Porque é talvez um dos meus preferidos poemas da Sandra Santos, "roubado" do seu magnífico Éter.
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros. Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser. Este é o momento para o cigarro que não fumo. Inspirar [fundo], expirar [calmamente]. Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens. Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).
Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.
Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.
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