# 99 - Memórias das Gândaras e da Bairrada

I
Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à brama impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.

II
Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de morros sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».

III
É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.

IV
Ao crepúsculo, desceu enfim a escada e entrou na atmosfera espessa do corredor; parecia flutuar; tinha o rosto sombrio, os cabelos caídos para os olhos e jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampôlas de soro nutritivo diluídas em leite. Empurrou devagar a porta da cozinha, onde o fogo tornava o cobre cor de sangue, e lembrou-se outra vez dos bichos imolados sobre as lajes do pátio. Havia um vulto debruçado para o lume, uma criada com certeza, entregue ao ritual das chamas: alimento, calor, sobrevivência diária. Continuou em frente no mesmo passo aéreo e saiu da cozinha; se alguém o visse agora pensaria num caso de sonambulismo: «quando acordar regressará»; talvez, mas as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criança.

Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.