I
Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à brama impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.
II
Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de morros sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».
III
É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.
IV
Ao crepúsculo, desceu enfim a escada e entrou na atmosfera espessa do corredor; parecia flutuar; tinha o rosto sombrio, os cabelos caídos para os olhos e jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampôlas de soro nutritivo diluídas em leite. Empurrou devagar a porta da cozinha, onde o fogo tornava o cobre cor de sangue, e lembrou-se outra vez dos bichos imolados sobre as lajes do pátio. Havia um vulto debruçado para o lume, uma criada com certeza, entregue ao ritual das chamas: alimento, calor, sobrevivência diária. Continuou em frente no mesmo passo aéreo e saiu da cozinha; se alguém o visse agora pensaria num caso de sonambulismo: «quando acordar regressará»; talvez, mas as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criança.
Ao crepúsculo, desceu enfim a escada e entrou na atmosfera espessa do corredor; parecia flutuar; tinha o rosto sombrio, os cabelos caídos para os olhos e jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampôlas de soro nutritivo diluídas em leite. Empurrou devagar a porta da cozinha, onde o fogo tornava o cobre cor de sangue, e lembrou-se outra vez dos bichos imolados sobre as lajes do pátio. Havia um vulto debruçado para o lume, uma criada com certeza, entregue ao ritual das chamas: alimento, calor, sobrevivência diária. Continuou em frente no mesmo passo aéreo e saiu da cozinha; se alguém o visse agora pensaria num caso de sonambulismo: «quando acordar regressará»; talvez, mas as palavras hesitam de repente, incertas, disjuntivas, e o poema esboroa-se no rasto da criança.