# 88 - Uma revolução dissimulada numa pandemia




Dissimulamos, mas no nosso dissímulo
não há engano, embora, encolhidos,
também a nossa rejeição se vinge.
Dissimulamos
porque não podemos agir de outra maneira,
sem forças para alterar agora o curso
tendencioso das coisas,
e esperamos, no duelo,
que a sorte inverta a sua andadura
e nos oferça um errar menos perverso
onde assestar de novo os nossos dardos.
Dissimulamos porque ainda temos força
para levar em frente, altivos, o nosso duelo,
para, chorando a sós,
suportar a dor com digno semblante.

Talvez com outra têmpera pudéssemos virar
o curso inelutável da vida
e fazê-lo rodar mais sorridente.
Talvez, com outros actos, pudéssemos cavar
um outro sulco mais fértil e nele, afinal,
colher menos enganos.
Não é certo. Talvez o seja, às vezes.

Não pretendemos esborratar os nossos passos
para que pareçam mais incertos.
Demo-los, e a eles nos sujeitamos,
mas não mereciam tanto duelo.

Não somos culpados de um errar pouco temeroso,
de um sofrer próprio e alheio. Não queremos
ser culpados de existir,
não aceitaremos esse dislate.
Arriscámos, sem mais acerto,
num devir demasiado rigído,
demasiado tendencioso da vida,
mas mesmo na própria dor
olhamos altivos o seu curso e maldizemos,
não os nossos desencontros,
mas apenas o seu errar previsto,
sem aceitar culpa nenhuma de estar vivos.

Não pediremos perdão por termos sido.
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.