# 53 - Entremos



"Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.


Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada."



Hoje, temos direito a dois extras...

O Gregory Porter num Cyber dueto com o Buddy Holly


E a fantástica coleção de músicas de Natal do Sufjan Stevens: escrita ao longo de muitos anos, para enfrentar uma relação difícil do músico com a quadra, é um poderoso antídoto contra a solidão e a tristeza!


# 52 - Fome de Vento



"Não me perguntem em que andei ocupado.
Mantenho a mudez;
e não digo os porquês.
Reina o silêncio num mundo destroçado.
Faltou ao verbo alento;
a fala é já sem tento.
E sonha-se com um sol que ria sem cessar.
Tudo fica pra trás;
Depois - tanto faz.
A palavra morreu, com esse mundo a acordar"

# 51 - Eu amarei... as palavras




Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.
Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.
Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.
Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.


E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.
Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.


Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.
A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.
Rasga-se seda para aprender o ritmo.
Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.
Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,

que não nos deixa respirar.
A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.

Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.

# 50 - Porque hoje é sábado



Macho e fêmea os criou.
Bíblia:
Gênese, 1, 27 


I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado. 

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado. 


II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.

Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado. 


III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado."


# 49 - As meninas d'oiro



"(...) Uma rapariga muito bonita, tratada com um desvelo constante e atenções demedidas pelo conjunto da população masculina, incluindo aqueles - a imensa maioria - que não têm esperança nenhuma de obter favores de ordem sexual, e verdade seja dita, muito particularmente por eles, com uma emulação abjecta, confinando certos cinquentões ao gatismo puro e simples, uma rapariga bonita diante da qual todos os rostos se alegram, todas as dificuldades se resolvem, recebida em todo o lado como se fosse a rainha do mundo, torna-se naturalmente uma espécie de monstro de egoísmo e de vaidade auto-satisfatória. A beleza física desempenha aqui exatamente o mesmo papel que a nobreza de sangue no Antigo Regime, e a breve consciência, que começam a ter na adolescência, sobre a origem puramente acidental da sua posição, dá rapidamente lugar a uma sensação de superioridade inata, natural, instintiva, na maior parte das raparigas muito bonitas, que as pões completamente à parte, e claramente acima do resto da humanidade. Uma vez que todos, em redor da rapariga bonita, têm por único objectivo evitar-lhe todos os desgostos, e satisfazer o mais pequeno dos seus desejos, torna-se evidente que ela acaba por considerar o resto do mundo composto apenas por servidores, tendo ela por única tarefa conservar o seu próprio valor erótico - na expactativa de encontrar um jovem digno de receber a sua estima. (...)"

# 48 - Sound and Vision



Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

Um tributo magnífico


O original


# 47 - Pode o bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadear um tornado no Texas?



"Por exemplo, movíamos as mãos quando vivíamos na Terra, e ao fazê-lo fazíamos vibrar a atmosfera em torno delas. A vibração estendia-se indefinidamente até atingir cada partícula de ar do planeta, que desde então e para sempre ficava animada por aquele movimento de mão único. Os matemáticos do nosso mundo conheciam muito bem este efeito. Realizaram cálculos exactos sobre os efeitos produzidos num fluido por impulsos particulares, até conseguirem determinar com que período preciso um impulso de determinada extensão contornaria o globo, influenciando (para sempre) cada  átomo da atmosfera circundante."

PS: O conto «O Poder das Palavras», foi publicado em 1845. O matemático e meteorologista Edward Lorenz, publicou as suas descobertas (empíricas) relacionadas com a geometria fratal - associadas à ideia do "efeito borboleta", em 1963. Curiosamente, cerca de 100 anos antes, Edgar Allan Poe, escritor e poeta, parece tê-lo descrito com tão boa precisão!

# 46 - Não és os Outros






"Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
Teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante."

# 45 - De verão em verão até perfazer 34 primaveras



Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.

Anda o cego a tocar La Violotera,
e eu a vê-lo e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar

Que riso perto, que aflição distante,
que infíma débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta draga carburante,
rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?

Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele, e a mim.

# 44 - A loja do mestre Hermeto "abriu" em Espinho




a loja do mestre Hermeto
tem a forma dum coreto
ele usa búzios do mar
com zumbidos de insecto
junta guizos de embalar
ao som do martelo-pilão
e assim ele faz
assim faz a percussão

a loja do mestre Hermeto
tem ao balcão um cigano
tocando a sua guitarra
tem a cauda dum piano
em cima duma fanfarra
tudo junto em sintonia
assim faz a harmonia

anda, vem daí
vem daí, vou-te levar
à loja do mestre Hermeto
anda, vou-te levar

na loja do mestre Hermeto
há o canto dum riacho
um compasso corredor
há um galho contrabaixo
há um canário tenor
é quem mais se desafia
um canário tenor
disputando a melodia

vem daí vais-te passar
tu nem vais acreditar
à loja do mestre Hermeto
vão doutores e analfabetos
na lógica do mestre Hermeto
a música não tem classe
é uma casa de passe
onde se passam carretos

A versão do disco voador dos Clã: https://bit.ly/2NhxZBa
O último do Hermeto Pacoal & Grupo: https://youtu.be/B17bz0x21dA

# 43 - A (im)possibilidade de uma ilha



E o mar que me sufoca, e a areia,
A procissão dos instantes que se sucedem
Como aves que pairam docemente sobre Nova Iorque,

Como grandes aves de voo inexorável.

Vamos! Chegou o momento de quebrar a concha
E de ir ao encontro do mar contilante
Por novos caminhos que os nossos passos conhecem
Que seguiremos juntos, hesitantes de fraqueza.

# 42 - Crónicas sobre a fé numa terra ardente



"E parecia aquele Tejo
este rio doirado
parecia até que tu vinhas
comigo a meu lado
ou seria das flores
e das matas cheirosas
das madressilvas dos frutos
das ervas babosas

E pareciam campinas
vales tão estendidos
pareciam mesmo os teus braços
que me abraçam cingidos
ou seria das silvas
do gengibre do benjoim
do cheiro daquela chuva
dos cacimbos enfim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce

E parecia verão
no imenso arvoredo
parecia até que dizias
qualquer coisa em segredo
ou seria dos dias
muito quedos
sem fim
das noites
muito melhor
assombradas
assim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce"

# 41 - Dia de Reis, dia de plebeus




"Em vez da consoada há um baile de máscaras
Na filial do Banco erigiu-se um Presépio
Todos estes pastores são jovens tecnocratas
que usarão dominó já na próxima década

Chega o rei do petróleo a fingir de Rei Mago
Chega o rei do barulho e conserva-se mudo
enquanto se não sabe ao certo o resultado
dos que vêm sondar a reacção do público

Nas palhas do curral ocultam microfones
O lajedo em redor é de pedras da Lua
Rainhas de beleza vêm de helicóptero
e é provável até que se apresentem nuas

Eis que surge no céu a estrela prometida
Mas é para apontar mais um supermercado
onde se vende pão já transformado em cinza
para que o ritual seja muito mais rápido

Assim a noite passa E passa tão depressa
que a meia-noite em vós nem se demora um pouco
Só Jesus no entanto é que não comparece
Só Jesus afinal não quer nada convosco"
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.