Escreve agora a música que os muros trauteiam como eu dilapidei o meu tesouro.
Desenha agora a árvore que rebentou por dentro. Mostra agora o coração com uma flecha no centro.
Vivi de brilho e cuspi ouro pela boca. Se ninguém me quis prender foi porque não dei caça não dei luta nem falei em razão de força maior nem sequer do futuro que me escuta.
Este livro custa a abrir e aquela porta a fechar. Desata agora a chorar mesmo sem querer mesmo sem sentir. Chora por tudo o que não está para vir.
«Bom vivo, cuja mente adormecida O rezingão salvou lá mais pró fim, Permite a este espectro nova vida. O espectro sou do Capitão Alving.
Traz-me o passado mudo e reprimido, Qual campeão lascivo em leito imundo, Eu tento abrir o gesso comprimido E abrir-me em confissão enfim ao mundo.
Em copo de água ébrio a velório, O pastor Manders leva à certa o tanso. Pra mim, que em vida estroina sou simplório, O que afogar o pato, afogue o ganso.
A esposa deu-me um filho achacado, Já a criada fêmea sã pariu. Paternidade, teu nome é agrado, Se o filho sábio sabe a quem saiu.
E juram ambas que eu sou o rapaz Por quem lhes veio a sua criação. Vá, diz, destino, se é que és capaz, Por que é um deles são e o outro não.
O Olaf pode andar plo seu carreiro, Viver a vida pura de Susana; Mas lá apanhou no banho turco inteiro Seu quantum est de Sífilis Romana.
Já Haakon sobe a via do mais fácil, Lá vai cantando e rindo bem feliz, Pra dar em velho um sorrisinho grácil, Sem ter uma verruga no nariz.
Eu desisti de tudo, a bem dizer, Mas diverti-me, andei na vadiice. Não esqueço que a donzela com prazer Nos tira as forças todas à denguice.
E quanto mais eu penso e bebo nisso, À meia-noite, o ponche espirituoso, Mais me convenço e certo estou eu disso, Que o Manders veio ao lanche e foi guloso.
Que a Vikings, como eu, que a si se afundam, Que lhes importa a culpa, se reside Em D.S.T., TB., pensões e abundam Até em Capitães de Port-Saíde?
E tudo e nada é digno de censura, O apelo da rameira, o ai do jovem. Mas não se inquire, em busca de uma cura. Se quem pecou foi este ou o pai deste homem.
A choça arde. O biltre fariseu Do carpinteiro pôs fim ao vigário. Tivessem fogo preso como eu E não teria havido incendiário.
E mais, não fosse eu sido todo o sido, Promíscuo, fraco, um pândego constante, O mundo não teria aplaudido E não haveria nada de interessante.»
«Aos companheiros entretanto dava Euríloco um mau conselho: 'Ouvi as minhas palavras, vós que tanto sofrestes! Para os pobres mortais todas as mortes são odiosas, mas morrer à fome é o mais desgraçado dos destinos. Sacrifiquemos as melhores vacas do Sol aos deuses imortais, que o vasto céu detêm. Se alguma vez regressarmos a Ítaca, a nossa terra pátria, logo para Hiperíon, o Sol, construiremos um templo, e lá deporemos muitas e valiosas oferendas. Mas se o deus contra nós se encolerizar por causa das vacas de chifres direitos e a nau quiser destruir, e se tal consentirem os outros deuses, por mim prefiro morrer de um ttrago no mar, do que definhar lentamente numa ilha deserta.'»
No príncipio era o Verbo (e os açúcares e os aminoácidos). Depois foi o que se sabe. Agora estou debruçado da varanda de um 3º andar e todo o Passado vem exactamente desaguar neste preciso tempo, neste preciso lugar, no meu preciso modo e no meu preciso estado!
Todavia em vez de metafísica ou de biologia dá-me para a mais inespecífica forma de melancolia: poesia nem por isso lírica nem por isso provavelmente poesia. Pois que faria eu com tanto Passado senão passar-lhe ao lado, deitando-lhe o enviezado olhar da ironia?
Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo sonhado? Que parte de ti me pertence, a que se lembra ou a que esquece? Lá em baixo, na rua, passa para sempre gente indefinidamente presente, entrando na minha vida por uma porta de saída que dá já para a memória. Também eu (isto) não tenho história senão a de uma ausência entre indiferença e indiferença.
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros. Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser. Este é o momento para o cigarro que não fumo. Inspirar [fundo], expirar [calmamente]. Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens. Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).
Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.
Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.
Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.