# 109 - A janela iluminada

"A realidade é uma hipótese repugnante,
fora de mim, entrando por mim a dentro,
solidão erramte
órfã de centro.

Que resposta vos darei,
coisas, se tudo é de mais,
se em vós procurei
o que em mim procurais?

Um espelho, um olhar
onde me ver;
um silêmcio onde escutar
as minhas palavras; algo como uma vida para viver.

Se estais também sós,
assustadas e hostis,
como eu em vós?"

# 108 - Trintão

Escreve agora a música
que os muros trauteiam
como eu dilapidei o meu tesouro.

Desenha agora a árvore
que rebentou por dentro.
Mostra agora o coração
com uma flecha no centro.

Vivi de brilho
e cuspi ouro pela boca.
Se ninguém me quis prender
foi porque não dei caça
não dei luta
nem falei em razão de força maior
nem sequer do futuro que me escuta.

Este livro custa a abrir
e aquela porta a fechar.
Desata agora a chorar
mesmo sem querer
mesmo sem sentir.
Chora por tudo
o que não está para vir.

# 107 - Avelina, Criada para todo o serviço

 

«Bom vivo, cuja mente adormecida
O rezingão salvou lá mais pró fim,
Permite a este espectro nova vida.
O espectro sou do Capitão Alving.

Traz-me o passado mudo e reprimido,
Qual campeão lascivo em leito imundo,
Eu tento abrir o gesso comprimido
E abrir-me em confissão enfim ao mundo.

Em copo de água ébrio a velório,
O pastor Manders leva à certa o tanso.
Pra mim, que em vida estroina sou simplório,
O que afogar o pato, afogue o ganso.

A esposa deu-me um filho achacado,
Já a criada fêmea sã pariu.
Paternidade, teu nome é agrado,
Se o filho sábio sabe a quem saiu.

E juram ambas que eu sou o rapaz
Por quem lhes veio a sua criação.
Vá, diz, destino, se é que és capaz,
Por que é um deles são e o outro não.

O Olaf pode andar plo seu carreiro,
Viver a vida pura de Susana;
Mas lá apanhou no banho turco inteiro
Seu quantum est de Sífilis Romana.

Já Haakon sobe a via do mais fácil,
Lá vai cantando e rindo bem feliz,
Pra dar em velho um sorrisinho grácil,
Sem ter uma verruga no nariz.

Eu desisti de tudo, a bem dizer,
Mas diverti-me, andei na vadiice.
Não esqueço que a donzela com prazer
Nos tira as forças todas à denguice.

E quanto mais eu penso e bebo nisso,
À meia-noite, o ponche espirituoso,
Mais me convenço e certo estou eu disso,
Que o Manders veio ao lanche e foi guloso.

Que a Vikings, como eu, que a si se afundam,
Que lhes importa a culpa, se reside
Em D.S.T., TB., pensões e abundam
Até em Capitães de Port-Saíde?

E tudo e nada é digno de censura,
O apelo da rameira, o ai do jovem.
Mas não se inquire, em busca de uma cura.
Se quem pecou foi este ou o pai deste homem.

A choça arde. O biltre fariseu
Do carpinteiro pôs fim ao vigário.
Tivessem fogo preso como eu
E não teria havido incendiário.

E mais, não fosse eu sido todo o sido,
Promíscuo, fraco, um pândego constante,
O mundo não teria aplaudido
E não haveria nada de interessante.
»

# 106 - O despertar da primavera

 

«Aos companheiros entretanto dava Euríloco um mau conselho:
'Ouvi as minhas palavras, vós que tanto sofrestes!
Para os pobres mortais todas as mortes são odiosas,
mas morrer à fome é o mais desgraçado dos destinos.
Sacrifiquemos as melhores vacas do Sol
aos deuses imortais, que o vasto céu detêm.
Se alguma vez regressarmos a Ítaca, a nossa terra pátria,
logo para Hiperíon, o Sol, construiremos um templo,
e lá deporemos muitas e valiosas oferendas.
Mas se o deus contra nós se encolerizar por causa das vacas
de chifres direitos e a nau quiser destruir, e se tal consentirem
os outros deuses, por mim prefiro morrer de um ttrago no mar,
do que definhar lentamente numa ilha deserta.'»

# 105 - Reflexões de Bajazet

 Era uma vez uma barata
Barata desde a nascença
Que um dia caiu num copo
Um copo cheio de moscas

Tanto espaço ocupava a barata
Que as moscas se indignaram
"Bem cheio já está o nosso copo!"
Por Júpiter elas clamaram...

Mas enquanto vociferavam
Eis que chega Nicéforo
Um honesto e digno velho.

# 104 - Anjos caídos em confinamento

 No príncipio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo,  neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

 Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviezado
olhar da ironia?

Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá já para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.


Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.