"O tempo é um velho corvo de olhos turvos, cinzentos. Bebe a luz destes dias só dum sorvo como as corujas o azeite dos lampadários bentos. E nós sorrimos, pássaros mortos no fundo dum paul dormimos. Só lá do alto do poleiro azul o sol doirado e verde, o fulvo papagaio (estou bêbado de luz, caio ou não caio?) nos lembra a dor do tempo que se perde."
(A vida cai morta. Assim que a Vida cai, entra pela porta do berço o Mordomo, que se vai prostar à porta da tumba, fazendo repetidas reverênciasm quando a Morte, arrastando a Vida, abandornar a cena) MORTE Vês como falham os projetos fúteis, Que, por vaidade, disseste ter feito? Não têm base, grandezas inúteis, Caem por si: só eu as aproveito.
(A Morte leva a Vida de rastos pela porta da tumba, desaparecendo ambas da cena. O Mordomo dirige-se então para a porta do berço, dando entrada, com repetidas vénias, à Vida Útil)
VIDA ÚTIL Sou a verdadeira vida, Limpa, sem hipocrisias, Completamente despida De sofismas, fantasias, Pelas quais fui impedida De melhorar nossos dias. (reparando no Mordomo) Você, que faz?... MORDOMO (enfático) Cumprimentos, Vénias e mais cortesias; Conforme as categorias; Assim faço os cumprimentos. VIDA ÚTIL Mas quem é? Aguarda alguém? MORDOMO Sou o preconceito, eu... VIDA ÚTIL (interrompendo) Siga, que também morreu, Já não faz falta a ninguém, Vá atrás da vida morta. (o Mordomo procura sair pela porta do berço, mas a Vida Útil opõe-se, indicando-lhe a porta da tumba) Saia por aquela porta, porque é inútil também. (o Mordomo sai então pela porta da tumba, muito abatido) Viram como sucumbiu?... A vida dos artíficios, Das ilusões e dos vícios, Como era falsa, caiu. Há-de cair, recair, Até se regenear, Para que possa ficar Como há-de ser no porvir. Eu sou a vida a seguir, Escola da humanidade; Sou aquilo que a vaidade Não conseguiu destruir. Sou a vida; vou seguindo Com vontade e persitência, Aos vindouros transmitindo Todo o bem quanto a ciência P'ra o mundo for produzindo. CAI O PANO
"Volto, pois, a casa. Mas a casa, a existência não são apenas coisas que li? E o que encontrarei se não o que deixo: palavras? Eu, isto é, palavras falando, e falando me perdendo entre estando e sendo. Alguma vez, quando havia começo e não inércia quando era cedo e não parecia, as minhas palaras puderam estar onde sempre estiveram: no apavorado lugar onde sou o silêncio."
REI: Ninguém menos é rei, que quem tem reino. Ah, que não é isto estado, é cativeiro,de muitos desejado, mas mal crido,uma servidão pomposa, um grã trabalhoescondido sob nome de descanso.Aquele é rei somente que assi vive(inda que cá seu nome nunca s’ouça)que de medo, e desejo, e d’esperançalivre passa seus dias. Ó bons dias,com que eu todos meus anos tão cansadostrocara alegremente! Temo os homens,com outros dissimulo; outros não possocastigar, ou não ouso. Um rei não ousa.Também teme seu povo, também sofre.Também suspira, e geme, e dissimula.Não sou rei, sou cativo: e tão cativocomo quem nunca tem vontade livre.
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros. Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser. Este é o momento para o cigarro que não fumo. Inspirar [fundo], expirar [calmamente]. Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens. Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).
Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.
Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.
Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.