"Agora, sou eu que tento esconder o meu crime - estou eu a perder a razão. Sim, tento escindê-lo. Por vergonha? Provavelmente. É lógico: todo o criminoso tem medo de ser apanhado. Por que motivo eu, que cometi o maior dos crimes, não teria também medo de ser apanhado?
O maior dos crimes. Uma doença mental é sempre o pior dos crimes. Neste caso uma que nos apaga o cérebro como uma borracha a palavras mal escritas.
"Lembra-se do que fez ontem?"
"Não."
"Isso é o que dizem todos, para se fingirem inocentes."
E estarão certos, os nossos acusadores. Não me lembro do que fiz ontem, não me lembro que nome dar ao lavatório (por acaso ainda lembro, lavatório, era apenas um exemplo), não me lembro de nada. Querem melhor prova do crime?
Agora, estremeço de medo a cada vez que vejo uma pessoa cumprimentar-me e tardo a reconhecê-la. Por enquanto tenho conseguido dissimular bem a doença. Mas... e quando não o conseguir mais fazer?
Até já tenho medo de me aproximar de espelhos. Não por medo de não ver lá o meu reflexo. Isso (ainda o sei) são os vampiros. Evito espelhos por um medo muito pior.
O medo de não me reconhecer ao espelho. De só lá encontrar, na imagem reflectida, sorrindo gorda e satisfeita, a doença."