# 75 - A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo





"Não sei se és parvo se és inteligente
- Ao disfrutares vida de nabado
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

Não vês que o teu bem-estar faz d'outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p'ra ti o céu e a terra...
- Não te achas egoísta ou exigente?

Não creio nesse Deus que, na igreja.
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P'ra o homem conseguir o que deseja

Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?...
P'ra esses é o céu; porque o inferno
É p'ra quem vive a vida à custa alheia!"

# 74 - Oh mar salgado, quanto desse sal são lágrimas de Portugal?





"Dêem uma volta pela cidade numa sonolenta tarde de domingo. (…) Que encontram? Postados como sentinelas em toda a periferia da cidade, milhares e milhares de mortais contemplam, hipnotizados, o oceano. Uns apoiam-se às estacas; outros sentam-se na beira dos molhes; outros namoram o arcaboiço dos navios que vêm da China; alguns sobem até ao topo dos mastros para desfrutar a perspetiva marinha ainda mais ampla. É todavia gente ligada à terra, gente que passa os dias da semana entre quatro paredes de cal e gesso – amarradas aos escritórios, colada aos bancos, debruçada sobre as escrivaninhas. Então porque se encontra aqui? Já não existem os belos prados verdes? Que força os arrasta para este lugar?

Mas vejam! Aí vem mais gente, encaminhando-se diretamente para a água, como se fosse mergulhar. Que coisa bizarra! Nada os satisfaz senão o limiar extremo da terra; não lhes basta passear à sombra dos armazéns, espalhados pelas redondezas. Não! Têm de se aproximar da água, tanto quanto possível, quase a caírem nela. E ali permanecem – quilómetros de basbaques, léguas… Homens da terra, todos eles, desaguam de becos e azinhagas, de ruas e avenidas, do Norte, do Leste, do Sul e do Oeste. E, contudo, formam um conjunto homogéneo. Será que são atraídos pelas agulhas magnéticas das bússolas de todos aqueles navios?

Continuem a olha… Imaginem-se agora no interior, numa região lacustre. Escolham qualquer caminho, ao acaso – nove vezes em cada dez ele conduz a um vale e deixa o viandante junto de uma lagoa cavada na corrente. Há magia, neste facto! Que o mais distraído dos homens se lance nas reflexões mais abstractas – se esse homem começar a andar é mais do que certo que os seus passos o levarão infalivelmente para junto da água, se água existir na região. Se alguma vez o leitor se encontrar a sofrer de sede, no grande deserto americano, tente a experiência, na hipótese de viajar na caravana um professor de metafísica. Sim, porque toda a gente sabe que a meditação e a água se encontram indissoluvelmente ligadas.

Observem agora um artista. O pintor deseja pintar a paisagem mais romântica, mais sonhadora, mais suavemente velada – o torrão mais encantador que se encontram em todo o vale do Saco. Qual é o principal elemento do seu quadro? Lá estão as grandes árvores com os rotundos troncos capazes de abrigar um eremita com o seu crucifixo; e o prado adormecido onde preguiça o gado; da vivenda, alcandorada à distância, escapa-se um lânguido fio de fumaça. No bosque distante serpenteia um caminho que se dirige para a crista da montanha, através dos confortes lavados por uma luz aveludada. Mas, embora o quadro seja muito belo e os pinheiros deixem cair as suas folhas, ligeiras como suspiros, sobre a cabeça do pastor, todo este encanto seria fútil se o olhar do zagal se não iluminasse com o reflexo ribeirinho que lhe serve de espelho.

Visitem as pradarias durante o mês de Junho, quando por infindáveis quilómetros uma pessoa se afunda no mar de lírios. Que falta aí para uma criatura se sentir plenamente satisfeita? A água! Não existe uma só gota em toda a redondeza… Se o Niagara fosse uma catarata de areia continuaria a haver quem fizesse uma viagem de milhares de quilómetros para ir vê-la? Porque motivo o pobre poeta do Tennessee, ao receber inesperadamente um punhado de moedas de prata, hesitou entre comprar a capa (de que estava bem precisado) e ir dar um passeio a Rockaway Beach? Porque será que quase todo o jovem robusto de corpo e espírito sente, uma vez por outra, um desejo louco de embarcar? Porque será que, ao efectuar a primeira viagem, o passageiro sente uma singular vibração quando descobre que a terra se perdeu para além do horizonte? Por que razão os antigos persas consideravam o mar como sagrado? Por que razão os gregos lhe atribuíam como divindade o próprio irmão de Júpiter? Por certo tudo isto tem o seu sentido. E, um sentido muito profundo, se nos recordarmos da história de Narciso que, desesperado pela suave e fugidia imagem que se refletia nas águas, nelas se afogou. Essa miragem, vemo-la em todos os rios e oceanos do mundo. É a imagem do fantasma inacessível da vida, onde se acha a chave de todo o enigma."



# 73 - Mariachi



"Às vezes estou à mesa: e cômo ou sonho ou estou
somente imóvel entre a aérea
felicidade da noite. O sangue do mundo corre
e brilha. Porque a minha carne se distrai
entre as coisas altas da primavera nocturna.
Ocupo-me nos símbolos, e gostaria
que meu coração
entontecesse lentamente, que meu coração
caísse numa espécie de extática e sagrada loucura.

E enquanto estou só e o céu rodeado de lírios
amarelos, e animais de luz, e fabulosos
órgãos de silêncio, descansa
sobre os meus ombros
seu doce peso antigo - eu penso
que haveria uma palavra vingativa e pura,
uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse
primeiro na voz ou na claridade
ou na tenebrosa
fantasia, e que depois me ferisse
na minha própria morte, son a intensa
profusão celeste.

Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caíssse sobre sse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte - veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.
Sei que a minha vida estremeceria, que
os braços soâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês da primavera e a terra
baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trémulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar.
Ferveriam os pequenos vulcões dos frutos.
Dentro dos tanques tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonha ou estar à mesa
da fantasia nocturna
seria para um homem, sib a abóbada da cabeça, como
o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.

- Cada boca pousa sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca."

Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.