# 25 - Contemplar





«A posse é para meu pensar uma lagoa absurda — muito grande, muito escura, muito pouco profunda. Parece funda a água porque é falsa de suja.
A morte? Mas a morte está dentro da vida. Morro totalmente? Não sei da vida. Sobrevivo-me? Continuo a viver.
O sonho? Mas o sonho está dentro da vida. Vivemos o sonho? Vivemos. Sonhamo-lo apenas? Morremos. E a morte está dentro da vida. 
Como a nossa sombra a vida persegue-nos. E só não há sombra quando tudo é sombra. A vida só nos não persegue quando nos entregamos a ela.
O que há de mais doloroso no sonho é não existir. Realmente, não se pode sonhar.
O que é possuir? Nós não o sabemos. Como querer então poder possuir qualquer coisa? Direis que não sabemos o que é a vida, e vivemos... Mas nós vivemos realmente? Viver sem saber o que é a vida será viver?
Nada se penetra, nem átomos, nem almas. Por isso nada possui nada.
Desde a verdade até a um lenço — tudo é impossível. A propriedade não é um roubo: não é nada.»

# 24 - A vida







«É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, cisálida... Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor de um ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois... Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma pernam e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
- Já hoje ouvi a cigarra...
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateias festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa... Quase que sentia ainda o corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar! Cantar o milagre da anódina e conseguida ascenção.
E cantava.
A Primavera estava no fim  e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do Inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se em volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria pereição atingida.
- Até azambua a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar, Com que razão? Porquê?
Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem!
Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de dartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
- Muita alegria tem tal bicho!
- A alegria passa-lhe... É deixar vir o Inverno...
A pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
- E temo-lo aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos. Que nas tulhas se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria o celeiro vazio. Um símbolo de inquebrável confiança.
- Mas em quê? - perguntava um pardal suspicaz.
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.
- Chega-lhe, Cegarrega!
O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!... Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte. A morte que espreitava já, com os olhos frios do Outubro...»

# 23 - Há sempre o sol






«O patrão deu a volta pelos combros e postou-se à frente do rancho. Quando levavam as espigas a engavelar, os ceifeiros viam-no. Parecia-lhes que era a imagem da chuva - o senhor dos seus destinos.»

# 22 - O sentido das coisas





«Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra - sombra disforme no chão do seu entendimento
Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender? 
Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o alto azul de verde branco da manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte quem ama. 
Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam... Meu coração não está neles, nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por um papel.
Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de impressões de que sou o espelho oscilante - por vender, inútil.»

# 21 - Mundos imaginários, mundos reais








«Imagine there's no heaven 
It's easy if you try 
No hell below us 
Above us only sky 

Imagine all the people 
Living for today 

Imagine there's no countries 
It isn't hard to do 
Nothing to kill or die for 
And no religion too 

Imagine all the people 
Living life in peace
You may say, I'm a dreamer 
But I'm not the only one 
I hope some day 
You'll join us 
And the world will be as one
Imagine no possessions 
I wonder if you can 
No need for greed or hunger 
A brotherhood of man 
Imagine all the people 
Sharing all the world
You may say I'm a dreamer 
But I'm not the only one 
I hope some day You'll join us 
And the world will live as one»

# 20 - Panoramas








«O panorama é infiindavelmente gratificante. Assemelha-se à resposta de uma vida inteira de perguntas e de vagos anseios. Satisfaz toda a curiosidade infantil, todos os desejos abafados, todas as facetas que nele existem do cientista, do poeta, do vidente primitivo, do observador do fogo e das estrelas cadentes, todas as obsessões que lhe devoram o lado noturno da mente, todos os anseios doces e visionários que ele alguma vez sentiu por lugares anónimos e distantes, toda a sensibilidade terrena que ele possui, a pulsão natural de uma consciência mais selvagem, uma afinidade com os animais, toda a crença numa força vital imanente, o Senhor da Criação, todo o acalentar secreto da ideia do caráter único do ser humano, todas as aspirações pueris e esperanças simbólicas, tudo o que é excessivo ou não é suficiente, tudo de uma só vez e a pouco e pouco, toda a ânsia ardente de fugir às responsabilidades e à rotina, de fugir à sua própria especialização excessiva, ao eu circunscrito a descrever espirais centrípetas, todos os resquícios do anseio de voar dos seus tempos de garoto, dos seus sonhos de espaços bizarros e alturas arrepiantes, das suas fantasias de uma morte feliz, todas as aprendizagens indolentes e sibaríticas - lotófago, fumador de ervas aromáticas ou não, contemplador das profundezas do espaço com as pupilas azuis -, tudo isto é satisfeito, tudo reunido e amalgamado naquele corpo vivo, a visão que ele contempla da vigia.
- É que é tão interessantem, sabes - diz por fim. - As cores e tudo.
As cores e tudo.»

# 19 - Mudanças








«The only thing constantly changing is change
And change is always for the worse
The worm on the hook always eaten by a fish
The fish by bird man or worse
A spot on the lung, a spot on your heart
An aneurism of the soul
The only thing constantly changing is change
And it comes equipped with a curse

The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse
The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse

The only thing constantly changing is change
The living only become dead
Your hair falling out, your liver swelled up
Your teeth rot your gums and your chin
Your ass starts to sag, your balls shrivel up
Your cock swallowed up in their sack
The only thing constantly changing is change
And it's always change on your back

The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse
The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse, baby

The only thing constantly changing is change
Ashes to ashes to dusk
The deer and the rabbit, the musk of your hole
Filled up with myriad dread, ooohhh
The dread of the living, the dread of the living
The frightening pulse of the night, ah
The only thing constantly changing is change
It's changes that will kill us with fright

The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse
The only thing constantly changing is change
And it's always for the worse
The only thing constantly changing is change
The only thing constantly changing is change
The only thing constantly changing is change
And it comes equipped with my curse»

# 18 - São tristes os meus dias com pedras






"São tristes os meus dias com pedras
em lugar de mãos
ou a cabeça funda na brancura
de través do travesseiro
e o corpo depresso em moles guindastes.
São dias de chorar por menos
ou teimar queixoso com um crânio polido,
batuque convexo
no muro demorado.
Ficar a ouvir o sangue,
o som tubular do sangue. Ao vale seco
da clavícula atrair a água, o sangue
e sorver a sopa intestina
ou se o líquido escapa à boca
tantálica, calar com argila
o que me pede água.
Ficar a palpar os buracos
da ausência, as ligas
da ausência, as ribanceiras
a que caem os pensamentos, a cor
dióspiro que banha a enfermidade
e em seguida tomar o pulso
evadido, travar o touro, o soco da dor,
o infinito infinitivo presente.
Uma amálgama de alma
migra no fôlego de modorrento
pregão de dor, o condor
passa e anda andino e é uma
traça asfixiante: faço um céu rarefeito,
a dispneia é um felino
que arranha céus
e a boca rebuliço espúmeo
expele o sabor da morte
e o que mais consiga cuspir
por entre ovéns e enxárcias
e traves quebradas.
É uma desilusão com as coisas,
uma desilusão funda com as coisas,
com o vazio meio-cheio das coisas.
Meu fôlego um fólio cheio
de silêncio, uma catástrofe natural
um vulcão: no meu pulmão pôr lava
e no trovão treva."
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.