“Revi mentalmente a teoria do David, as suas palavras antes de me mandar à vida. «Juntamo-nos porque há a simpatia inicial, depois o enamoramento, mas também para que olhem por nós, nos tragam um chá ou um cobertor. Sabe bem haver quem se preocupe connosco, nos toque no braço, nos cabelos e nas mãos. Juntamo-nos porque é o que se faz há milhares de anos e o que se espera que façamos. Juntamo-nos para que as vidas se justifiquem e legitimem, ao assemelharem-se a todas as outras. É assim que se faz. Juntamo-nos e ficamos nivelados e amparados. Juntamo-nos porque acreditamos amar-nos. Temos filhos. Entramos para esse exército, que é também um corpo diplomático. Habituamo-nos. Não estamos presos, mas de quem é este livro, e aquele jarrão? De quem é esta casa, este filho? Os gestos habituais que conhecemos de cor ao acordarmos de manhã, fazemo-los porque estamos juntos ou porque nos pertencem? O que é meu e o que é teu? Seria bom estar só, uns tempos, sem os filhos, sem contas para pagar e sem obrigações; isso seria vida, mas urgente, agora, é chegar ao verão. Liquidar os atrasados com o subsídio de férias. Comprar roupas para as miúdas. Substituir o frigorífico que não congela há mais de dois meses. Descansar por 15 dias. Amamos aquele com o qual estamos juntos? Estamos juntos, não estamos? Chega de pormenores. Que interessa o resto? Que interessa quem amei mais? A minha mãe casou para se amparar, o tio Alberto amou toda a vida a cunhada e nem no leito de morte lho revelou, e a minha tia Inês negou-se ao rapaz por quem se apaixonou por estar prometida ao tio Alberto. Todos cumpriram as suas obrigações. Não terem acordado ao lado do objeto amado, não terem iniciado os gestos ou as palavras do amor não amputou a paixão. Amaram na presença e na ausência. É assim que se faz. O amor não anda ao nosso lado, o amor anda à solta nos peitos, como um pássaro engaiolado. Adormece-nos. Desperta-nos. Faz-nos sair e voltar a casa. Chorar. Rir. E se isto não é viver, o que é a vida?»
Revi palavras, gestos, olhares, chorei sem interrupção, até à hipnose dos sentidos, até adormecer e despertar e ser capaz de pronunciar uma única palavra, ideia, essência: David, David! Mais nada. Era meia-noite quando me recompus o suficiente para conduzir até casa.”