# 14 - O diabo a tecelas






«Que faz cada um neste mundo, que o perturbe ou o altere? Cada homem que vale, que outro homem não valha? Valem os homens vulgares []
pelos outros, os homens de acção pela força que interpretam, os homens de pensamento por o que criam.
      O que criaste para a humanidade, está à mercê do esfriamento da Terra. O que deste aos pósteros, ou é cheio de ti, e ninguém o entenderá, ou da tua época, e as outras épocas não o entenderão, ou tem apelo para todas as épocas e não o entenderá o abismo final, em que todas as épocas se precipitam.
      Fazemos janelas, gestos na sombra. Por detrás de nós o Mistério nos  [] o mos todos mortos, com uma duração justa. Nunca maior ou menor.
      Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memoria dos que os viram e ouviram; outros, ficam na memória da nação que os teve.;
      O perene é um desejo, e o eterno uma ilusão.
      Morte somos e morte vivemos. Mortos nascemos; mortos passamos; mortos já, entramos na Morte.
      Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega e se furta à vida.
A vida é pois um intervalo, um nexo, uma relação, mas uma relação entre o que passou e o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte.
      …a inteligência, ficção da superfície e do descaminho.
      A vida da matéria ou é puro sonho, ou mero jogo atómico, que desconhece as conclusões da nossa inteligência e os motivos da nossa emoção. Assim a essência da vida é uma ilusão, ou aparência, e como há só ser ou não-ser, e a ilusão e aparência da vida ser, tem que ser não-ser, a vida é a morte.
      Vão o esforço que constrói com os olhos na ilusão de não morrer! «Poema eterno», dizemos nós; «palavras que nunca morrerão». Mas o esfriamento material da terra levará não só os vivos que a cobrem, como o []
      Um Homero ou um Milton não podem mais que um cometa que bata na Terra.»

# 13 - Viver






«Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trémulas nas campinas alagadas, pantanosas, húmidas como o ar antes do sol; as vielas, onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver... Hora de bênçãos tuas mãos subtis... A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro... Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na ideia de tê-las, a maresia, à noite entrada, nos cais da cidade humedecida pelo arrefecer…
      Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas... Nomes de rainhas antigas... Vitrais onde pintaram condes fortes… A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável... As mãos secas uma contra a outra.
      Os escrúpulos do monge que, no livro antiquíssimo encontra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.
      Praia ao sol a febre em mim... O mar luzindo a minha angústia na garganta... As velas ao longe e como andam na minha febre... Na febre as escadas para a praia... Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum — a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas...
      Tudo é dos outros, salvo a mágoa de o não ter.
      Dá a agulha a mim... Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos — e o não se saber onde ela está metida, ou que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes... Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr da cómoda — supérfluas — e não há o calor de braços sonhados à roda do pescoço da mãe»
Fragmentos de «uma autobiogradia sem factos». De Bernardo Soares. Mas também de outros.
Dia sim, dia não. Dia sim, dia sim. Dia não, dia não. Quando eu quiser.
Este é o momento para o cigarro que não fumo.
Inspirar [fundo], expirar [calmamente].
Ouvir, em vez dos pássaros, o som ordenado das pautas escritas com os punhos dos Homens.
Qualquer relação entre texto e música poderá ser mera coincidência (ou não).




Disclaimer 1: Este espaço serve ao autor para uma "releitura" de trechos de textos literários ao som de peças musicais, numa conexão que poderá parecer não ter sentido para o leitor. Uma explicação poderá ser encontrada após o contacto com o animador do blog. Ou não.

Disclaimer 2: Os textos, registos sonoros e audiovisuais aqui utilizados pertencem exclusivamente aos seus autores originais.

Disclaimer 3: A imagem que ilustra o topo desta página pertence ao magnífico trabalho de Manuel Casimiro.